Capa.set18 2 Maria Julia Moreira

 

Quando Vidas secas foi publicado, na primeira metade do século XX, os artistas procuravam encontrar seu lugar depois que os portões da criação tinham sido escancarados pelas vanguardas. A partir de então, era não só possível, mas necessário ousar em qualquer direção: nos temas, na forma e na linguagem. No Brasil, o Modernismo já fincara suas bases e, quase nos anos 1940, contava com um time de autores que a historiografia literária considerou pertencente ao que chamou de segunda fase do modernismo.

Quase todos eram regionalistas, essa alcunha tão malcompreendida e que, muitas vezes, desperta a reação equivocada de um rótulo que diminui, mas que fortalece e amplia. Um dos pulsos de qualquer literatura nacional está fundamentado justamente na capacidade de falar do próprio chão e de como homens e mulheres andaram, marcharam e caíram sobre ele.

No ano de 1938, foram publicados, entre outros: Olhai os lírios do campo, de Érico Veríssimo; Pedra Bonita, de José Lins do Rego; A estrada do mar, de Jorge Amado; Cazuza de Viriato Correia; Porão e sobrado, de Lygia Fagundes Telles e Vidas secas, de Graciliano Ramos; talvez o aniversariante mais lembrado do grupo e que merece um olhar cuidadoso e atento para os motivos de sua permanência no cânone nacional.

Para simular a experiência de um primeiro encontro com Vidas secas, decidi comprar um exemplar novo, de produção recente. Foi fácil de encontrar. Estava disposto em uma pilha em local de destaque na loja. Bom sinal, a pilha e a posição. Os exemplares mais visíveis de uma livraria não estão lá por acaso. Adquiri uma tiragem de 2017 da editora Record, de número 135, cujo texto tem como base a segunda edição, revista pelo próprio Graciliano Ramos.

>> Vidas secas e alguns de seus assombros, por Estevão Azevedo

Isso é algo importante de perceber nesse momento em que o mercado do livro no Brasil atravessa uma grave crise, com dificuldades muito específicas do ramo: problemas de distribuição, atraso de pagamentos, dívidas, falências. Enquanto editoras e livrarias fecham as portas, autores buscam alternativas, editores, críticos, livreiros e distribuidores procuram rotas de reinvenção e sobrevivência, Vidas secas segue inabalável na condição de clássico brasileiro, presente nas prateleiras, sendo lembrado como aniversariante do ano.

O volume que comprei conta ainda com um ensaio crítico de Hermenegildo Bastos, uma cronologia da vida e obra de Graciliano, uma relação de seus livros publicados no Brasil e no exterior, além de um apanhado da sua fortuna crítica, com uma lista imensa de pesquisadores que dedicaram dissertações, teses e ensaios aos seus trabalhos nas universidades brasileiras e estrangeiras.

A presença dessas unidades paratextuais específicas complementa a biografia desse livro, um objeto-universo que resiste caminhando com suas próprias letras. Os textos sobre o aniversário de 80 anos têm justificado a atualidade de Vidas secas na semelhança com as crises migratórias de nosso século e com a repetição da seca no Nordeste, que voltou a forçar as famílias a mudar de lugar.

O tema e o mote central do livro – retirantes em busca de sobrevivência – não são exatamente uma novidade. Graciliano passa pela porta anteriormente aberta por alguns autores, com destaque para Rachel de Queiroz em O quinze, publicado em 1930, de quem o autor comentou em entrevistas o impacto causado. O romance da escritora cearense foi construído a partir de uma base de pesquisas nos campos de concentração de refugiados no Ceará e em sua experiência com homens e mulheres do sertão de Quixadá, onde viveu boa parte de sua infância.

Na hora de transformar matéria-prima em literatura, outras questões foram usadas como elementos do enredo. Conceição, a protagonista, está em busca de respostas para suas perguntas sobre a condição da mulher, a justiça social e o que se faz com o amor quando ele não se encaixa com o resto da vida que se pretende levar.

É curioso lembrar que a fortuna crítica de O quinze, nos seus 88 anos de vida, perpassa inúmeras questões diferentes das abordadas ao falar de Vidas secas. A primeira questão é a autoria feminina e, nesse ponto, a voz de Rachel e a de Graciliano se cruzam. Em entrevista concedida em 1937, o próprio Graciliano relembraria o estranhamento que a leitura de O quinze provocou nele. “Depois conheci João Miguel e conheci Rachel de Queiroz, mas ficou-me durante muito tempo a ideia idiota de que ela era homem, tão forte estava em mim o preconceito que excluía as mulheres da literatura. Se a moça fizesse discursos e sonetos, muito bem. Mas escrever João Miguel e O quinze não me parecia natural”. Esse assunto, o lugar da mulher nos espaços que os homens ocupam de forma predominante, está cada vez mais atual. Felizmente, as coisas mudaram nesses quase 90 anos, mas Rachel de Queiroz talvez tivesse de manter a sua altivez peculiar se fosse começar a carreira nos dias de hoje.

Os homens e mulheres do Nordeste foram protagonistas de mais outras tantas obras dos contemporâneos de Graciliano Ramos. Considero que o maior mérito de Vidas secas, justamente por ser o mais difícil de alcançar, é o trabalho com a linguagem e a narração. Apesar de ser contado por um narrador onisciente, o uso impecável e invisível do discurso indireto livre provoca o efeito de uma polifonia sofisticada.

O efeito deve-se, em certa medida, ao fato de o livro ter sido construído em partes avulsas, em um primeiro movimento. Mesmo assim, não há emendas. O avesso do bordado é perfeito.

No capítulo dedicado a ele, o Menino mais velho, sem nome, preocupa-se com a acepção da palavra inferno. Graças ao engenho do narrador, é possível saber que ele não acredita que um nome bonito assim possa designar um lugar feio. Preocupava-se com as palavras, com os mistérios da vida. Como era possível haver estrelas na Terra?

Sinhá Vitória pensava muito na sua cama de tira de couro, na injustiça de não ter o direito de dormir uma noite de sono como dormia seu Tomás da bolandeira. De Fabiano, o leitor consegue saber tanto, que quase sente a tontura da cachaça na sua cabeça, a zoada da noite de festa, as horas amargas que viveu na prisão, o medo e a raiva do soldado amarelo.

O Menino mais novo queria brincar e ser menino, junto com sua amiga Baleia, a cadela. Mesmo quem não leu o livro a conhece, ouviu falar algum dia nos bancos de escola do Brasil afora. Baleia, a cadela que não conseguimos esquecer depois de compreender suas preocupações, de saber o que se passou na sua cabeça perto da morte, nos minutos finais.

A economia de personagens de Vidas secas obriga o autor a cuidar muito bem de cada um deles. São poucas pessoas em pouco espaço de texto – um livro de 13 capítulos curtos. A possibilidade de deixar o texto raso como açude seco seria imensa, não fosse Graciliano Ramos um autor tão habilidoso.

O que encontramos de habilidade nessa arquitetura cuidadosa de narração salva o texto da possível poeira que o tempo poderia depositar sobre essa obra, levando-a ao esquecimento. Vidas secas continua sendo uma aula de escrita literária, muito útil nos tempos de hoje, em que todos os dias surgem novos autores, novos livros, todos sempre muito apressados em busca da fama.

Na contracapa da edição que adquiri, há uma lição de Graciliano Ramos sobre escrita: “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxaguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer”.

Esse trecho de Graciliano nos leva a pensar no que mudou no ofício de escrever de seus dias para os tempos de hoje. Até onde a literatura brasileira avançou desde a segunda fase do modernismo? Por onde andaram e o que fizeram os autores que abraçam até aqui o Nordeste como tema? O que é a seca em 2018? Como a literatura lida com ela?

O pensamento de Graciliano sobre a escrita como um ofício que exige trabalho faz ecoar as falas de João Cabral de Melo Neto sobre a lida com as palavras, com o texto como organismo, a necessidade de limpar, polir, cortar, quebrar sempre que possível, deixar enxuto, reduzir ao mínimo necessário até que faça sentido.

Ao encerrar a releitura do meu novo exemplar desse livro de 80 anos, não constato sinais de velhice. Ainda há muita vida aqui. É possível falar de Vidas secas pelos olhos da história, da sociologia da literatura, do seu lugar na trajetória do autor, na linha do tempo do Brasil, mas escolho outra via para dizer por que fechei o livro com a certeza de que essa obra continua forte: há um grande poema escondido em Vidas secas, adormecido. Há música no chocalho das palavras. Barbicacho, trempe, macambira, suçuarana, baraúna, taramela, aió, pelame, enxó, marrã, mundéu, pucumã, jirau, losna, craveiro, arribação – as aves que cobrem o mundo de penas, expressão que quase batizou o livro.

Para além de um grande romance, Vidas secas é também poesia e música, um bloco de camadas sobrepostas de sentidos que o tempo tem tratado de realçar. Poucos octogenários chegam tão vivos ao seu aniversário. Os passos desse livro ainda estão vindo pela estrada nos pés de Fabiano, Sinhá Vitória, os meninos sem nome e os olhos vivos da cadela chamada Baleia, que também é Palavra.

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