Em Espetáculos sobre la realidad: ensayos sobre la literatura latinoamericana de las últimas dos décadas, Reinaldo Laddaga analisa a relação entre arte contemporânea, literatura e autonomia a partir de César Aira, João Gilberto Noll e Mario Bellatin. Na introdução de seu estudo, Laddaga afirma algumas “fórmulas” aplicadas ao exercício da literatura latino-americana que se propõe a construir textos por meio de perspectivas abertas de criação, fora das condições aplicadas à lógica produtor – receptor. Assim, tal produção, de certa maneira, vai “contra” os limites do objeto livro, tendendo a modificá-lo e afastá-lo da ideia de acabamento definitivo. Dessa maneira, o teórico argentino formula: “Toda literatura aspira à condição de mutante”; “toda literatura aspira à indução de um transe”.
Para Laddaga, esse transe surge por meio da vontade e do poder que alguém emana durante um “momento de extinção”. Ou seja, o transe acontece quando, diante de algum tipo de dissolução, o escritor consegue somar novas aspirações ao mundo, aplicar, por fim, o transe. Apesar do título delimitativo em termos de recorte cronológico, as investigações do teórico argentino são pertinentes para pensar alguns termos da poética uruguaia de outras décadas do século XX. Para dar sequência ao pensamento de Laddaga, a leitura feita por Sylvia Molloy, em Dos lecturas del cisne: Rubén Darío y Delmira Agustini, é um contraponto que se faz necessário. Em seu texto, publicado nos anos 1980, Molloy pergunta-se: nós estamos pensando no Uruguai como terra privilegiada de escritores raros e precursores originais?
Esse questionamento foi, ao longo das últimas três décadas, repensado por alguns teóricos como Ángel Rama, Valentina Litvan e Javier Uriarte. A classificação de uma escrita como da ordem do “incomum”, hoje, já não tem força teórica ou mesmo de alteridade. O excêntrico, na literatura uruguaia, foi exaltado em diversos textos que pretendem analisá-la e não é essa a intenção deste. Porém, a ideia de que a “raridade” significa, de certa maneira, um movimento de exclusão e inclusão, faz com que se torne factível relacioná-la às características mutante e indutiva da literatura. De que maneira o elemento de primeira estranheza causado por escritores como Mario Levrero, Juan Carlos Onetti, Felisberto Hernandéz, Marosa di Giorgio, entre outros, dialoga com as aspirações de um mecanismo literário que pretende somar novos mundos à extinção?
A estrutura do texto – uma espécie de não apologia à completude da narrativa – une os quatro escritores citados. Os aspectos de fragmentos, relatos e contos permeiam muitas de suas obras e as tornam, em certo modo, escritos que são caracterizados na constância de um misterioso contrafluxo. Não se trata de livros para os quais existe uma preocupação explícita em vivenciar a vanguarda ou reiniciar definições de linguagem, mas, sim, de estabelecer que os anti-heróis, talvez tão óbvios, são os que mais possuem manejos de exercitar o silêncio estrondoso das tensões ficcionais uruguaias.
Para reorganizar o literário, não é sempre necessário criar monumentais estratégias. Como observa Laddaga, as aspirações da escritura e seu caráter rarefeito são ótimas pistas sobre os anseios da literatura no continente latino-americano. Assim, em meio a tipos que vão desde o mais monótono passante que atravessa a Plaza Independencia, em Montevidéu, até santas diabólicas em um jardim descrito de forma minuciosa, uma espécie de poética aérea surge à beira do Rio da Prata.
Nesse contexto, apesar da distância geracional, Felisberto Hernandéz (1902-1964) e Marosa di Giorgio (1932-2004) são exemplos que oferecem um panorama de pontos que se expõem como importantes para a literatura uruguaia. Ambos são escritores com pouca ou nenhuma difusão no mercado editorial brasileiro e, ao longo de sua produção, foram interpretados como “estranhos” e de difícil leitura pela crítica. Em seus livros, por meio da escrita fragmentária, montam o espaço narrativo possível para mundos que, em um primeiro olhar, são muito distintos – Felisberto, pianista, nascido na capital uruguaia, morreu no início da ditadura militar; Marosa, nascida em Salto, atravessou o período ditatorial em meio à convivência com a sua família católica – porém, que se acabam por encontrar no eixo de uma vivência relacionada à loucura, à memória da infância e a algo abstrato, etéreo, pairando no ar gelado pelo vento sur.
Através de narrativas para as quais notas musicais e corpos de meninas “voando” pelas árvores são guias de linguagem, Felisberto e Marosa deixaram obras que não se detêm diante das premissas institucionais do literário e que encontram, no texto fragmentado, as ganas e os métodos para exercer sequências de transe. A partir das leituras de seus livros, ergue-se um território que se assemelha a uma concha: algo sussurra, mas não se entende muito bem o que diz. E aí está, no barulho surdo que não se mostra na linguagem, o desenvolver-se dessa poética que se pretende zunindo compassado entre os corpos, a paisagem e as coisas.
FANTASMAGORIAS DE UM PIANISTA
Anos antes do boom latino-americano e do exaltado realismo fantástico e suas novidades revolucionárias para a literatura no continente, Felisberto Hernandéz cruzava o cone sul latino-americano para tocar piano. A música está presente em seus textos de maneira variada; personagens estão em contínua busca pelo aprendizado do som ou são guiados por um “sentido distraído”, como escreve Enriqueta Morillas em edição de Nadie encendía las lámparas.
De acordo com Morillas, o ritmo musical e a organização das palavras, para Felisberto, seguem as pautas de deslocamentos das “novas distribuições” da música contemporânea. Assim, a sua escrita acontece a partir de um tipo de liberdade compositiva, base da sua técnica antirrealista. Em seus textos, Felisberto exprime um incômodo com as convenções sociais e o curso “normal” da vida, questionando-os por meio de memórias de sua infância – temática que compõe toda a sua obra – como no trecho de El caballo perdido (1943) em que o narrador descreve uma de suas aulas de piano: Celina me fazia pôr as mãos abertas sobre as teclas e com seus dedos levantava os meus, como se ensinasse uma aranha a mover as patas. Ela se entendia com minhas mãos melhor do que eu mesmo. Quando as fazia andar com lentidão de caranguejos entre pedrinhas brancas e pretas, de pronto as mãos encontravam sons que encantavam tudo o que havia ao redor do abajur, e os objetos ficavam cobertos por uma simpatia nova.
De certa maneira, a música também é uma forma de anotação e ali, já no começo de sua produção literária, Felisberto desenvolveu a prática da escrita a partir de um pensamento como o de Wittgenstein. No trabalho do alemão, a ideia de fragmento, de várias anotações que apontam para o problema – suas investigações filosóficas, por exemplo – tem papel central na estruturação da linguagem.
Assim, Felisberto dialoga com Wittgenstein não só pela sua inclinação ao fragmentário, algo que faz parte do universo da literatura latino-americana e, em especial, uruguaia. Para além, existe um aspecto de incomunicabilidade com o mundo que parece rondar a sua literatura como rondou a construção filosófica wittgensteiniana. Em seus livros, existe a “vontade criativa” de outras descobertas de narração, de novos modos de pensar a partir dos problemas da língua. Para Felisberto, o corpo da linguagem que nós somos, no mundo, assim como para Wittgenstein, não está consolidado. Dessa forma, o escritor uruguaio volta-se para o moderno com um olhar “de canto”, algo de sua inquietude diante da realidade latino-americana afasta-se do centro onde a obra é tida como totalizadora. Assim, seus narradores são vozes que aspiram à literatura como formadora de linguagem, o seu transe é também a uma maneira de resistir à língua.
Na década de 1940, Felisberto abandona o piano e dedica-se, com exclusividade, à literatura. Essa etapa de sua produção é marcada, em definitivo, pela volta à infância, adolescência e memórias familiares. O cunho biográfico e a presença de personagens que marcaram a vida do escritor tornam-se o centro de seus livros que, no período, lembram alguns textos de Luigi Pirandello e Marcel Cohen.
Felisberto tornou-se um dos símbolos dos “precursores uruguaios”, aos quais Sylvia Molloy fez referência no texto já citado, pois desenvolveu formas de dialogar com a vanguarda a partir de perspectivas que envolviam, por fim, aglutiná-las ao seu próprio universo ficcional. Ele não a anula, renega ou reproduz: a vanguarda é uma, entre tantas outras formas, de atacar o problema (a linguagem). Assim, sua obra vagueia entre as características do estranho e do mutante com o intuito de reorganização dos espaços da língua e, por consequência, do som.
PAPEIS SELVAGENS E TRANSMUTAÇÕES
Em um primeiro momento, pode-se delimitar quatro tipos de aproximação para a obra de Marosa di Giorgio. As duas primeiras são de contexto estético: a escrita da uruguaia está ligada à influência gótica e neobarroca, apresentando um universo para o qual a presença de elementos pós-modernos em diálogo com o Barroco e a constante referência à simbologia medieval – igrejas, florestas, ruínas – e ao imaginário sobrenatural – monstros, demônios, fantasmas, signos religiosos – é de extrema importância. As outras duas são de tipo temático e estão ligadas às questões da animalidade e do corpo. Em seus livros, pessoas se misturam e se transformam em plantas, animais, santos, seres vampirescos e demoníacos, pondo em xeque a maneira como esses corpos não padronizados e bárbaros levam ao limite a ideia do que é a performance do humano na esfera social.
Por meio de tais elementos estéticos e temáticos, as influências europeias – também do Surrealismo e de outros movimentos – aparecem na obra de Marosa não apenas como referências de contexto teórico-estético ou intenção de juntar sua escrita, em certo grau, à experiência do cânone. Pelo contrário, o tom de seus fragmentos, poemas e textos eróticos é burlesco e expressa, às vezes e de modo perturbador, as formas de opressão usadas pelo patriarcado e as vertentes de domínio que o sistema determina. Em resumo, a uruguaia utiliza diversos ícones religiosos clássicos, por exemplo, para construir um cenário que, a princípio, parece obedecer às experiências conservadoras.
Então, a narrativa alerta o leitor de que aquele espaço, o jardim cheio de diversos tipos de rosas, árvores, vegetais, é também o espaço do horror e da aflição, como neste trecho de Los papeles salvajes (1989): Domingo à tarde e eu atravesso o quintal sem recordar como saí e cheguei até aqui. O céu é de ouro, deslumbrante, e das laranjeiras caem frutas e flores. (...) Ao descer, já vejo um cadáver. Vestido e na horizontal. E, mais à frente, outro. E outro. Por todos os lados, aparecem. E cada um com o fígado destroçado ou o coração. Mas, quem são? Acaso não percebi que houve uma breve guerra?
Entre compilações e reedições, Marosa publicou cerca de 20 livros de poesias, fragmentos, relatos e contos. Um dos destaques de sua obra são as suas narrativas eróticas – reunidas em El gran ratón dorado, el gran ratón de lilas (2008) – nas quais as principais questões passam por episódios que abordam gênero, identidade e animalidade. Dessa maneira, Marosa coloca o corpo em evidência quando performa a sua aspiração literária. Se toda literatura tem a condição de mutante, todo corpo também a tem. Assim, os personagens estão em constante processo de modificação e, na sua obra, isso é possível por meio de uma junção máxima com a natureza.
Nos jardins e descampados, o seu modo de narrar encontra espaços que, se nas linhas iniciais, apresentam ares de pacatez e beleza, logo são povoados por cadáveres e situações de violência direcionado ao corpo da mulher. Em sua obra, Marosa di Giorgio ecoa o horror das brutalidades vividas na América Latina por meio de uma ambientação mística na qual os tipos de plantas e a anatomia das mariposas são parte de um todo onde o transe reverbera, enfim, muito dolorido e vivo. Em No develarás el misterio (2010), livro que reúne várias de suas entrevistas, ela afirma ter relação perfeita consigo mesma, mas, “de vez em quando, ocorre um tumulto. Minha identidade é segura e trêmula”. De certo modo, sua poética corresponde a tal definição – entre o ar e a terra, encontram-se os corpos e é lá que se deve somar os desejos, mesmo que tantos processos de extinção estejam à espreita.