Livro de Mário Testino revela mais sobre o jeito carioca do que ele gostaria
Gisele Bündchen está de folga no Rio de Janeiro. Na piscina do hotel Fasano, a top descansa quando lhe surpreende um telefonema. “Poderia vir agora ao meu quarto? Estou com um amigo e gostaria de fotografá-la com ele”.
Bem, mesmo sem considerar a resposta da brasileira, talvez nenhuma outra pessoa no mundo pudesse ser autora desse telefonema, senão o fotógrafo Mario Testino. Peruano, 55 anos, Testino tem hoje o disparo mais prestigiado do universo da moda. Seus editoriais estão em revistas como a Vogue, a Vanity Fair ou a Harper’s Bazaar. Já realizou campanhas para a Calvin Klein, Dolce e Gabbana, Gucci e Salvatore Ferragamo, para ficar apenas com alguns nomes. Foi Testino quem descobriu as brasileiras Bündchen e Fernanda Tavares; foi ele também quem revelou Kate Moss, sua modelo preferida; e foi apenas para suas lentes que a princesa Diana consentiu posar “numa esfera de descontração e intimidade”.
Testino consolidou um novo jeito de realizar imagens de moda, praticamente sem equipe de apoio, tudo muito intimista. Uma maneira baseada na empatia ou, bem mais que isso, no seu talento em cultivar a amizade de seus fotografados.
A resposta de Bündchen foi positiva, e a sessão, realizada na cama de Testino, não durou mais que 10 minutos. O resultado são seis fotografias em que a modelo aparece, de “biquíni e sem maquiagem”, ao lado (em cima, em baixo...) do também brasileiro Carlos Bockelmann. As fotos da top podem ser conferidas no título mais recente de Testino, Mario de Janeiro Testino (Taschen), dedicado à cidade do Rio de Janeiro.
“Mario é brilhante em capturar o Rio. A sensualidade das pessoas e a felicidade nos seus corpos, o fato de eles levarem bem sua sexualidade e não sentirem medo de revelar nada sobre si mesmos”. No seu otimismo, a declaração de Bündchen é ingênua, mas também é certeira. Ela dá conta do que são, para nós, os brasileiros, e de resto, o que são, para todo o mundo, o Rio de Janeiro e os cariocas: uma cidade e uma gente insuportáveis pela sua obviedade. O Rio de Testino é a mesma cidade que, em 1986, o fotógrafo americano Bruce Weber encontrou: uma espécie de Sodoma tropical, sem poesia, sem sombra, sem sedução, enfim, uma cidade Real.
Somos índios e damos tudo que nos pedirem por um espelho. De tempos em tempos, algum fotógrafo estrangeiro vem lembrar-nos do nosso narcisismo: impossível negar qualquer coisa à câmera. Note, a fotografia é uma arte que lida com a exibição do corpo, com a revelação da intimidade, com a confissão, com a violência do gozo exato porque verdadeiro demais, próximo demais. E, convenhamos, poucos lugares conseguem ser tão violentos quanto o Rio de Janeiro. A violência do Rio está em todos os lugares, mas está principalmente nos seus lugares mais bonitos, nos mais ensolarados. Qual experiência pode ser mais devastadora do que um passeio pelo calçadão de Ipanema?
Tal a fotografia (essa técnica tida como exata), assim também é um passeio carioca: uma “ maquinação fria”, uma “perpetração sem afeto”. Estar no Rio é se dar conta que o gozo é da ordem do consumo. E que nessa maquinaria de corpos, só é possível que o gozo encontre seu objeto morto, porque há muito privado de qualquer implicação simbólica (eu mato quando eu condeno algo ou alguém a ser o que é, a ser igual a si mesmo). Eis o princípio da identidade: o Rio de Janeiro é velho e estéril porque não consegue fugir de sua própria estereotipia.
“Você acorda de manhã e, mesmo vivendo na cidade, está ali pertinho da praia e todos estão meio vestidos ou quase sem roupas”. Bündchen é mais uma vez perfeita e ingênua em sua exaltação do ethos carioca. Falar de uma sociedade sexualmente liberada, em dia com seu tesão, à vontade com o seu corpo, é supor, equivocamente, que o poder, com seu desejo de normalização, de docilização, desarmou-se, que sua dominação vacilou.
Mas é preciso dizer, sem muita originalidade, que se trata exatamente do contrário. Esse poder de sujeição (impessoal e meticuloso como uma fotografia) é estratégico, e fez uso do sexo para ampliar seu esquadrinhamento, sua opressão, para se ajustar minuciosamente a cada detalhe do corpo. O direito de gozar é, na verdade, o dever de encerrar o desejo no prazer. Vejam que irônico: o feminismo sempre imputou o sofrimento da mulher à milenar proibição de seu gozo, ao passo que a liberação sexual aleijou essa mesma mulher de um domínio mais poderoso do que o domínio do sexo, o domínio que o feminino sempre exerceu sobre os signos, sobre o universo simbólico (a maquiagem, o salto alto, o teatro da sedução...). A mulher castrou-se, verdadeiramente, perdeu seu poder, quando conheceu o dever do orgasmo.
Talvez por isso, nenhuma brasileira seja menos sedutora que uma carioca. Seu gozo é fácil, localizável, óbvio. Sua capacidade de jogar, não existe. Mas também, por isso, que nenhuma brasileira vende tão bem seu sexo: uma carioca está sempre disponível, apta para o prazer, exatamente como Gisele desimpedida para a câmera de seu, mui amigo, Testino.
EXCITAÇÃO FLUTUANTE
Como fala a canção, o carioca não gosta de dias nublados. Mas seria mais justo dizer: o fotógrafo e o sexólogo (o psicanalista também?) não gostam de dias nublados. O sexo é vendido como um segredo, mas nessa comercialização é necessário que todo segredo se esgote. É preciso falar sobre o sexo (com o terapeuta, com os amigos...), escutá-lo e consumi-lo, é preciso exibi-lo. Só assim, esse idiota perfeito, esse “carioca da gema” saberia, afinal, quem é. Eis todo o sortilégio: a falsa pressuposição de que, no sexo, estaria escondida a natureza de cada indivíduo, sua “verdade profunda”, assim, como na imagem fotográfica, esconder-se-ia uma “realidade real” representada (superar o simulacro é chamá-lo para dança, é admitir que não existe nenhuma realidade sob seu véu, que a verdade, como afirma Nietzsche, é um “exército de metáforas móveis”).
“Uma mulher carioca, por exemplo, está muito confortável com seu corpo. Ela é voluptuosa, atlética e forte. Mais que isso, ela está segura sobre si mesma”. Bündchen, sem abrir mão de seu olhar preciso e de sua ingenuidade, chega a provocar riso. Como, afinal, para me sentir bem e seguro, eu deva ser atlético, forte, saudável? A declaração da modelo mais parece o ridículo e verdadeiro saldo final do feminismo: “Vá à praia, use biquíni, mas seja magra e bronzeada”.
Cauã Reymond, Carlos Bockelmann, Márcio Garcia, Rodrigo Hilbert... Os rapazes de Testino tentam traduzir o “menino do Rio”. E o “menino do Rio” é aquele que oscilará entre a determinação de seu gozo e a debilidade de sua ereção: ele precisa estar disponível de todas as outras maneiras, porque o paradigma sexual não admite interrupções.
“Mario sabe que a excitação não está no fundo mar, ela flutua livremente no Rio, está em todo lugar.” Dessa vez, a declaração sobre Testino vem de outra amiga, a carioca Regina Casé. O fato é que é impossível encontrar esse Rio de Janeiro de Testino: sua violência é tão devastadora, tão real, que não suportamos (note, o que é verdadeiro demais para ser verdade é tomado como fantasia). Nesse sentido, todo o Rio é uma fantasia de sobre-oferta. Como afirmou Jean Baudrillard, a sex affluente society não tolera a raridade dos bens sexuais, tampouco a dos bens materiais, e falar que uma fotografia pode ser irreal é dizer que o imaginário se retirou em nome “da mais-referência, da mais-verdade, da mais-exatidão”: tudo (não toleramos qualquer tipo de carência) se insere numa evidência absoluta. O mesmo acontece com o sexo: o que foi ocultado e proibido passará a uma ordem de exibição irrestrita, de exatidão, que tornam impossível qualquer sedução, qualquer produção de desejo. Não seria completamente equivocado dizer que, sem a fotografia, não teríamos “sexualidade”, e vice-versa.
Ao contrário do que diz o senso comum, a “sexualidade” sobrevive do estímulo e não da repressão: “tens um sexo e deves encontrar seu bom uso”, “tens um inconsciente, e é preciso que isso fale”, “tens um corpo e é preciso usufruí-lo”, “tens libido e é preciso gastá-la”. Exatamente como a realidade necessita do imaginário, o desejo necessita da falta para existir. Por isso que, em meio à proliferação de suas figuras, em meio à onipresença do sexo, o desejo se transforma em um espectro.
O Rio de Janeiro sufoca todo desejo pelo excesso de gozo, de sexo. Como resposta, o desejo se transforma em uma assombração. As imagens de Testino não deixam dúvidas: o carioca é alguém que acabou de ver um fantasma, ou pior, é alguém que sabe que esse lhe espera na próxima esquina. A cultura somática é obscena porque exige que tudo seja “dito, acumulado, arrolado, recenseado”. Trata-se da cultura do mostrador: o que interessa é exibir a monstruosidade produtiva.
Como bem definiu Caetano Veloso, a fotografia de Mario Testino, esse amigo de todos, traduz a “sensualidade e o despreocupado estilo carioca”. Mas o caráter precário de seu desleixo não é fortuito. Essa despreocupação é fundamental para que o efeito de realidade seja mais eficiente, para que se alcance a veracidade do sexo sem véus, para que se conheça um mundo real que sequer existe. Eu vejo Fernanda Lima e Rodrigo Hilbert com seus gêmeos nos braços; eu vejo Cauã Reymond e Grazi Massafera numa cena de sexo ao ar livre; eu vejo Roberta Close. Mas o sortilégio é esse: eu vejo sempre o sexo com a sensação de que já não o via, de que alguém (um amigo?) revela-me generosamente um segredo. Estou sempre descobrindo um novo detalhe. Mas só há ingenuidade onde se pensa ver transgressão: todo o controle e preocupação em relação ao sexo (o bronzeamento, a ginástica...) só serviu para estimular o desejo do sujeito sobre seu próprio corpo.
Imagens, como as de Mario de Testino, oferecem o que devemos atingir com esse trato minucioso, com esse olhar de escrutínio. A deformação (a obesidade, o mau trato da pele, dos cabelos, o desalinho que não está na moda) indica um déficit moral ou mental (por isso, Bündchen, linda até sem maquiagem, é o nosso melhor gênio). E não desejamos parecer o vilão monstruoso, senão, apenas, compartilhar nossa existência em um mundo de mocinhos realmente retardados, ou melhor dizendo, um mundo de “meninos do Rio”, cuidando bem da aparência, da saúde, do sexo, do meio ambiente, enfim, trabalhando duro por um mundo “mais humano”, por essa “qualidade de vida” cujo modelo perfeito eu só encontro numa fotografia do Rio de Janeiro.
* Paulo Carvalho estuda estética e cultura midiática no Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da UFPE.