Cabral de olhos fechados em tourada com Stella, sua primeira esposa, Barcelona, dezembro de 1950
“Se não for essencial para Vocês, gostaria que o livro saísse sem fotografia e sem a minha biografia”, requisitou João Cabral de Melo Neto (1920-1999) a Daniel Pereira, seu editor na José Olympio. Na ocasião, a José Olympio fazia a edição de Escola das facas (1980) e, para justificar suas demandas, Cabral pontuou que as fotografias em livros sempre traziam escritores “três anos mais jovens” e com “ares meditabundos”. “Quanto à biografia, é coisa que não tenho”, completou.
É justamente se narrando como uma obra “duplamente negada” pelo poeta pernambucano, que A fotobiografia de João Cabral de Melo Neto (Verso Brasil) se edifica. Com coordenação geral da pesquisadora Valéria Lamego e organização de Eucanaã Ferraz, o fotolivro assume esse lugar profícuo de investigação, seguindo um ethos cabralino em busca da efígie e de uma voz que tentava ser “inenfática”. Nesse processo de investigações da fotografia a partir de um jogo de preencher lacunas, subjetividade e fragmentos de memória, encontramos registros em vigor de uma montagem cronológica, desde o Engenho do Poço, em 1920, em Recife, até sua morte no Rio de Janeiro, em 1999.
Uma memória individual, que, por se tratar de uma figura pública e essencial para a poesia nacional, se transmuta também em memórias e narrativas coletivas. A partir de mais de 500 imagens, o livro tece uma narrativa de uma vida privada — que se desejava secreta —, de um João Cabral de Melo Neto diplomata, pai, amigo, editor e impressor, um homem de vanguarda, viajante e tradutor. Inclusive, um ponto interessante para entender parte do olhar impresso nas fotografias é notar que autora de muitas das fotos era Stella Maria, então esposa do poeta. Essa autoria é carregada de uma visão aproximada e de vigor doméstico — e assim pessoal como poeta não queria ser —, noutros momentos é surpreendentemente oficial e preocupada apenas com o caráter documental do registro.
[primeira linha] Em Sevilha com os filhos, 1958 | Aloisio Magalhães, Francisco Brennand, Cabral e Delson Lima, Recife, 1954 | Com Stella e três dos cinco filhos, Espanha, 1949 | Com a irmã Leda, Recife, 1926 (crédito das imagens: Acervo da Família/ Verso Brasil Editora)
[segunda linha] Em Barcelona com Joan Miró, 1949 (Acervo da Família/ Verso Brasil Editora) | França, 1966, cartaz para Morte e vida severina (Reprodução Hiroto Yoshioka) | Cartaz da estreia de Morte e vida severina, São Paulo, setembro de 1965 (Reprodução) | Com a rainha Sofia da Espanha por ocasião do Prêmio Iberoamericano de Poesia, 1994 (Património Nacional de España)
Na tessitura do livro, a maneira como é feita a relação entre texto e imagem consegue costurar passagens visuais, com detalhes de obras e documentação de encontros. Em um exemplo desse exercício de montagem e colagens: uma imagem dos anos 1970 em alguns momentos se encontra ao lado da passagem de um poema feito 20 anos atrás. É uma forma mais elucidativa e menos linear de aproximar fragmentos.
Aqui a palavra "exercício" se aplica bem, por se tratar de uma fotobiografia que trabalha a todo tempo sua narrativa e constata: mesmo quando o autor não está presente, seus lastros estão. Em texto de abertura, o organizador Eucanaã Ferraz escreve sobre essa “impossibilidade de ser” e o lugar da memória no processo de “fotobiografar”: “Sua obra é exemplar de certa modernidade convicta de que a pessoa do poeta — sua vivência particular — deve permanecer fora da escrita”. E continua: “Por sua vez, a crítica não procurará o autor — nenhum autor — fora da obra, se, afinal, tudo está nos versos. E, nos versos, ele não está”.
Um fotolivro é decerto um enredo visual possível, talvez a maior prova que o passado é uma ilha de edição. Em A fotobiografia de João Cabral de Melo Neto, ao nos defrontarmos com as coisas que o cercavam, descobrimos rastros do poeta, que muitas vezes dizem mais sobre ele que seus próprios versos, como sintetiza sua imagem mais desnuda no poema Dúvidas apócrifas de Marianne Moore:
Sempre evitei falar de mim,
falar-me. Quis falar de coisas.
Mas na seleção dessas coisas
não haverá um falar de mim?