Em um encontro recente sobre literatura, discutimos o livro O método Albertine, da escritora canadense Anne Carson. Poucos dias depois, o Pernambuco me pediu uma resenha de um livro escrito pela tradutora de Carson, Vilma Arêas (foto). Em uma anotação que fiz de uma entrevista de Arêas sobre O método Albertine, leio: “O livro desafia o leitor ao exercício mental para alcançar uma compreensão desejável, com suas alegrias e penas”. A mesma sentença valeria para o livro que agora resenho, Um beijo por mês, que sai pela editora LunaPARQUE. Trata-se de uma coleção de textos que, claro, escapam às definições mais óbvias. O que eles têm quase sempre em comum é a crítica à desigualdade, ao racismo, além da descrição de imagens: fotos em uma exposição, obras de arte, capas de revistas, desenhos, matérias de jornais. Uma iconografia do dia a dia.
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Alguns dos textos têm como título Instantâneo, como se fossem polaroides espalhadas pelo livro, mas fora de ordem porque logo sabemos que começamos pelo Instantâneo (4) e o seguinte o (2) e depois dele o (3) seguido do (1). Este último revela a descrição de um papel pregado na geladeira: “Dentes ferozes. Dentro das lentes boiam dois caroços de feijão-preto. Queixo duplo tremendo nos tracinhos do desenho. Dedo em riste na cara de um garoto esquelético, cabelo pixaim enfiado no crânio como pregos”, em um balão o personagem grita “– Para acabar com os crimes só a pena de morte”. Logo mais no mesmo texto: “O segundo balão flutua sobre a cabeça espetada do menino, completamente encantado com tanta esperança gratuita. – Ela mata fome?”. Logo o leitor saberá que se trata de uma caricatura de Henfil. O que é isso, pergunta o resenhista a cada virada de página. Em uma certa passagem do livro El discurso vacío, de Mario Levrero, lemos: “No tengo, em verdade ya no tengo, curiosidade por conocer respuestas; hoy me basta com las preguntas”. Talvez essa citação me abra outro caminho pelo livro de Vilma Arêas. É um livro que pergunta.
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Uma das perguntas que podemos fazer, por exemplo:
A autora, estudiosa da obra de Clarice Lispector, parece dialogar muitas vezes com a ucraniana-pernambucana. Até onde vai essa influência? É o caso das passagens em que mulheres têm encontros inesperados nas ruas, nos táxis, com mendigos. Há aqui uma mistura de grito de revolta, provocação e exercício. Há, também, a tentativa de usar as palavras como vingança contra a injustiça e o poder. Outra pergunta sempre presente: O que essa imagem está escondendo?
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Vilma Arêas especula sobre a fotografia, mas poderia estar falando da literatura. Em um Instantâneo ela escreve: “Há algo na foto que não deveria ser mostrado? Por exemplo, a sugestão de que, para o desconsolo de muitos só reste um abrigo de pedra?” e logo mais: “Uma última questão: estaremos discutindo insensatamente uma afirmação do senso comum de que boa fotografia não pode mentir?” e então: “Estes são os volteios – deslocamentos, metáforas etc. – que fazem com que a literatura às vezes nos envergonhe. Mas como foi dito antes, embora se adivinhe tudo, nada se vê direito nesta cópia desbotada”. Em um trecho que poderia estar no filme sueco The square vemos uma escritora que, em uma entrevista, é acusada de ter um relacionamento pedófilo com o tio. O que nos é dado a conhecer são apenas as respostas da entrevistada, que fica cada vez mais perplexa com o comportamento da plateia. No Instântaneo (2), descreve uma capa da revista Carta Capital. Um policial agride uma criança e mais uma vez a autora faz perguntas sobre o que é privado e o que é público, o que é obsceno e o que não é, como se cutucasse a milícia fascista do MBL. “Mas sabemos que os centros de privacidade se transformam com o tempo e apenas em algumas culturas a fome, a morte e a doença são consideradas obscenas”.
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A casa descrita em Instantâneo (3) lembra a casa de um livro anterior, Vento sul (2011): “Os batentes de madeira estão rachados. A rua não é asfaltada. Pedras soltas, de tamanho variado, se espalham pelo barro”, em Vento sul: “À medida que a casa se despovoa, ele desdobra os espaços, puxadinho no quintal, varanda nos fundos”. Espaços abandonados pelos seus habitantes de diferentes formas. As descrições de casa de Arêas – aqui fica clara sua atenção aos espaços – reaparecem no penúltimo texto do volume, chamado Instantâneo da desmedida: “Ela ultrapassou o umbral, observando que pelo lado de dentro a porta era igual à de uma casa velha, de madeira, gasta, esfolada. A exposição era Desmedida, de Rochelle Costi (...) Tratava-se de uma casa antiga com muitos aposentos, expondo objetos, coisas, instrumentos de trabalho de tamanho descomunal. Num dos quartos um monte de carvão, ou pedras escuras se acumulava até a metade das paredes”. O que significaria uma casa vazia cheia de objetos imensos, pergunta um personagem. Talvez esse livro seja mais um enigma apresentado a Alice em um país de espelhos.
* Bernardo Brayner é escritor e assina o livro Tudo é grande demais para a pobre medida da nossa pele (no prelo).