Na primeira crônica mencionei a pasta digital onde armazeno imagens-amuleto, fotografias de manifestações e protestos, Brasil adentro, mundo afora. Pois certa vez aconteceu de me convidarem para falar sobre essas imagens. Foi em 2019, na Pontifícia Universidade Católica do Rio (PUC-Rio). Se não me engana o currículo Lattes, a intervenção chamou-se A construção visual das manifestações no Brasil desde 2013. Estávamos na rebordosa das eleições, 2013 parecia uma época distante embora seu sentido ainda esteja em disputa. Falei, falei, mostrei, mostrei. No fim da coisa toda, veio da plateia uma pergunta: mas então o que fazemos, como viver? Tem coisas que só o espectador brasileiro consegue produzir com perícia e naturalidade, e uma delas é alvejar palestrantes com perguntas de foro íntimo e universal. Tudo bem temperado na tensão entre o coloquial e a voragem, diria Oswald de Andrade.
Claro, era irrespondível. Nessas horas dá vontade de meter a Hilda (Hilst) e soltar uma frase desvairada: “Borboleta pra você também!” Naquela ocasião, fui salva da tentação do aleatório por uma espectadora que se mantinha meio oculta atrás dos cabelos. De braço em riste, desatou a falar, e gostei do tom de voz. Era uma mulher; era como se falasse comigo numa relação retilínea e exclusiva em que a plateia desaparecia.
Teria lá os seus cinquenta e tal, isso se sentia na franqueza um pouco calejada com que construía seu lugar de fala ali diante de todos, mas focada, mirando na minha pessoa. Disse primeiro ter ficado comovida ao rever tantas e vívidas imagens das manifestações de 2013. Naquele junho e julho ela estava péssima, meio perdida, meio deprimida, mal mesmo, quase nem saía. Foi quando resolveu sair de casa, pegou o metrô e saltou na estação Cinelândia, no Centro do Rio. Exatamente ali começava a concentração de uma manifestação agendada pra mais tarde. Ficou perambulando meio solta e sem rumo, até que se sentou. Deu mais alguns detalhes que já não me ocorre lembrar. A essa altura, já tinha se convertido no centro das atenções.
Ali sentada num meio-fio da Cinelândia, moveu os olhos para cima e percebeu que havia um faixão exibindo a frase “CU É LINDO”. Então sorriu, como não sorria havia tempos, meio que sentindo a alegria daquele golpe sagaz do destino de colocá-la bem debaixo daquela frase, junto aos militantes da alegria e do gozo. Disse inclusive que se identificou com a faixa, yes, yes, yes, seja lá o que isso significa. Eu no tablado, já aposentada da função de palestrar, bebia água e sorria pensando: sensacional! A mulher completou a história contando como se juntou àqueles jovens muito jovens que hasteavam bandeira tão feliz, tão livre. Alguém do outro canto da sala riu alto e disse: “Alô, alô, pera aí que assim a gente quase tem saudade do gás lacrimogêneo nas ruelas da Lapa!” E todos riram uma risada de desabafo. Tínhamos saudade sim — não do gás, claro. A moderadora aproveitou para agradecer e encerrar o evento.
Em comparação com outras comarcas, a chance de existir um grande louco de palestra dentro de um espectador brasileiro médio é imensa. Mas preciso dizer que não considero a fala da mulher um ato de loucura; muito pelo contrário, coleciono intervenções desse tipo como signo de uma lucidez desabusada e franca a que só falta um bom nome de batismo. Lucidez em estado bruto? Recentemente me aconteceu outra dessas numa palestra pelo Zoom. Dessa vez, o autor foi um rapaz adorável. Eu falava para a turma de uma professora sobre literatura e infância a partir dos textos de um poeta que venho traduzindo, Henri Michaux; sua ideia de humanidade como abertura, transformação contínua e inacabamento. Tudo decorria dentro da normalidade esquisita dos encontros virtuais, até que um aluno quis contar uma historinha: “Eu estava aqui pensando no que você disse sobre infância e arte, e aqui na minha cabeça juntei com uma coisa que vem acontecendo no zap, porque agora na pandemia tá todo mundo no zap, né, minha família toda tá lá, tem lá um grupão, e tem velho, adulto, criança, todo mundo junto. Às vezes minha tia posta coisas sobre a minha sobrinha, coisas que ela faz, e minha mãe comenta assim: ‘Criança só faz arte’, mas o meu pai comenta assim: ‘Criança só faz merda’. Então fiquei pensando, e queria que você falasse um pouco sobre essa relação, essa conexão entre infância, arte e merda.” Nem lembro como a palestra terminou, mas foi um final feliz.
Vanessa Barbara escreveu a melhor crônica de todos os tempos e contratempos sobre o Louco de Palestra, termo que ali se imortalizou. Relendo-a recentemente, desejei que a autora se animasse a produzir uma parte II, contemplando as diferenças regionais. Sobre o Rio, caberia uma etnografia caprichada do CCBB. Quem já frequentou os ciclos de debates no Centro Cultural Banco do Brasil sabe que ali a composição da plateia é 70% de loucos de palestra, 30% de pessoas loucas para dormir, precisadas mesmo. Nem é engraçado, mas é fato. Agora, no Rio, aqueles 70% lembram todos o Eduardo, personagem do conto Penso e falo do Rubem Fonseca. Alguém que pensa e fala sem pensar. É o homem sem superego, sem censura, sem noção, sem nada na cabeça além de um enorme cansaço furioso de tudo e todos que o impele a falar. Corajoso, o Eduardo. E acaba morto. Não sei como é no Recife, mas imagino que o louco de palestra mineiro possua um repertório singular, e uma linguagem de desvios arrojados.
Fica então aqui registrado meu pedido para Vanessa Barbara.
Agora, às vezes, é o louco que dá a palestra. Eu já fui essa, mas nem conto. Passons.
Esta também aconteceu no Rio (talvez haja um padrão aí, não sei, verifiquem, me escrevam, me corrijam). Um professor catedrático queria muito participar de uma conferência organizada pelos professores mais jovens do seu departamento. Tudo bem, vamos lá, não se pode fazer essa desfeita a um antigo professor. Mas qual o tema? O tema demorou a vir. Chegava a hora de produzir o material de divulgação e nada. Cadê o título, professor fulano? Ah, e era um evento sobre teoria literária. Enfim, veio o título, ele falaria sobre o Saci Pererê. Ok, um pouco fora do recorte, mas quem ia contrariar o catedrático?
A palestra foi mais extravagante que o título. O professor estava determinado a provar a origem goiana do Saci. Nada de mineiro ou de paulista. Goiano de Goiás. Muitas provas e muita convicção. Só que, além de goiano, o saci era um falo. Sim, um falo, não uma pessoa que fala. Vocês que são bobos não repararam: isso de uma perna só, hein, hein... E aquela carapucinha vermelha não engana ninguém... Ah, seu saci safado! A plateia se comportava exemplarmente, ignorando a extravagância daqueles argumentos e o nonsense do tema abordado. Até que a espectadora mais sincera do mundo ergueu a mão e soltou: Professor Fulano, por favor, me explique como é que isso do Saci Pererê ser um pau?!
A plateia finalmente pôde rir aliviada. A espectadora — vou chamá-la de Eduarda — falou o que pensou, e pensou o que nenhum daqueles espíritos atilados teve a coragem de dizer. Salvou a palestra, trazendo de volta o senso de realidade real para dentro do intelectivo recinto.
Dizem que a academia é tóxica. Nem sempre, nem sempre.