Raquel Salas Rivera dez17

 

brigo com minha namorada porque os fascistas querem me matar


no começo brigamos por fome
porque ela procurou os comprimidos e eu os tinha posto no forno
aos 14 anos tive que cuidar da minha mãe
quando chorava como alice.
chegamos ao topo da montanha
para ver apenas vento e água.

tenho na bagagem uma lista de motivos.
motivos para odiar você e, por extensão, a todos:

             primeiro motivo:
meu pai tem câncer.
             o mesmo pai que votaria em trump
                             se não fosse porto-riquenho,
             mas é porto-riquenho, como é seu câncer,
                             um câncer bem porto-riquenho.

             quinto motivo:
aqui minhas amizades acumulam hormônios
ali minhas amizades acumulam anos roubando ao estado que lhes roubou
recursos que sequer existem.

              décimo segundo motivo:
tenho raiva dos meus amigos brancos,
              para eles não importa a imposição dos controles fiscais,
                              para eles esta é a primeira ditadura.
              choro diante dos amigos a raiva que sinto da minha namorada,
                           mas deixo a raiva passar porque me preocupo com sua doçura.

motivos variados:
não consigo respirar nos porões.
as cartas codificadas se lêem com metrônomo.
este peito//raiva//tinta discordante.
o fascismo não é novo.
           o fascismo vivia nos condomínios fechados.
                         o fascismo esfregou minha cara na areia
                                        quando chegou por estas bandas.
que importa? é o lema do fascismo.
que importa que em porto rico baixem o salário mínimo?
que importa que toda tua gente morra lentamente?
o fascismo é tão não novo, que não conheço a diferença
entre a raiva que sinto e raiva que senti.

brigo com minha namorada porque ela abriu a janela e faz frio.
              brigo com ela porque faz frio e não estou em porto rico.
brigo com ela porque a luz da luminária é muito forte.
              brigo com ela porque tal luz não vem do sol que batia no rio da minha infância.

os fascistas querem nos matar.
nenhuma de nós diz porque é óbvio
como dizer o capitalismo é a fonte de todos os nossos problemas.
é tão óbvio que nos esquecemos,
ou queremos esquecê-lo porque destruí-lo parece impossível
quando apenas viver já é tanto.

brigo com minha namorada porque se esquece do nome
             da minha amiga boricua
e porque estou cansada.
me automedico com poemas.
realizo rituais de renascimento.
brigo com ela porque amo demais para estes tempos,
porque o amor é um recurso essencial,
mas não mais essencial do que a autodefesa,
que é, de todos os amores, o maior.

brigamos porque é meia-noite,
porque não há um dia em que não sintamos medo,
porque em todos os cruzamentos se lê inimigo,
porque qualquer homem branco pode estar armado,
porque sou boricua e gravam minhas conversas,
porque ela é judia e em seu sangue correm números,
porque os fascistas estão organizados
              para nos matar.
são coisas óbvias, coisas que sabemos,
coisas que repercutem.

muitos teóricos dizem que trauma é viver fora do tempo.
a velocidade da trilha sonora
não sincroniza com as imagens.
minha boca tampouco diz o que minha cara quer;
as palavras escapam, rápidas e cortantes,
como se eu não reconhecesse minha namorada.
acho que trauma é mais
               como se dessincronizassem a trilha sonora,
                              como se eu falasse por minha namorada
e ela falasse pelos fascistas.
é tão óbvio que não são dela as palavras,
é tão óbvio como dizer
o capitalismo é a fonte de todos os nossos problemas,
ou não podemos brigar se estivermos mortas.

 

*

 

 

Não é fácil ler um poema de Raquel Salas Rivera porque não é fácil viver. E tão difícil quanto ler este seu poema é tentar traduzi-lo. São muitas as pedradas que ele dá na gente – de ordem semântica, filosófica, civil, econômica e amorosa, tudo de uma vez só.

Salas Rivera escreve em inglês e em espanhol. A língua inglesa não faz flexão de gênero dos adjetivos e pronomes e, assim, amplia a possibilidade de uma comunicação mais inclusiva, no que se refere a mulheres e pessoas não-binárias – aquelas que, como Salas Rivera, não se identificam nem com o gênero masculino nem com o feminino. Foi na língua inglesa que resolveu-se, por exemplo, a questão do pronome neutro – o “they singular”.

A primeira menção ao uso do “they” como pronome neutro singular apareceu em 1980, no livro The handbook of nonsexist writing [Manual de escrita não-sexista], de Casey Miller e Kate Swift. Elas propõem uma linguagem inclusiva ao buscar um pronome singular livre de gênero e ao questionar a normatividade das flexões para o masculino em frases onde o sujeito não tem gênero. Em suma, as autoras contestam a “falsa universalidade” da masculinização da gramática. A apropriação e uso, há 37 anos, do “they” como pronome neutro fez com que ele já esteja bem difundido entre muitos leitores, escritores e falantes da língua inglesa – mas sua aceitação entre linguistas tradicionalistas ainda é restrita.

No português (e na maioria das línguas latinas), contudo, ainda não se chegou a um consenso sobre como lidar com a questão da linguagem inclusiva. Usa-se ‘@’, ‘e’, ‘x’ – um método que até resolve a escrita/leitura, mas não a fala (como pronunciar “amig@s” ou “amigxs”?). Nesses casos, questiona-se também a inclusividade de pessoas com deficiência visual, já que os aplicativos de oralização de textos não conseguem decodificar uma palavra como “amigxs”.

Sobre isso – o uso do ‘x’ e do ‘e’ no espanhol –, Salas Rivera me disse: “É muito difícil encontrar uma forma, na língua espanhola, de tornar visível meu ser não-binário. Talvez por eu ser poeta eu aprendi [a usar] uma outra língua, algo como uma ‘língua de poeta’. Mas eu defendo fervorosamente o direito das pessoas de usar ‘x’ e ‘e’”.

Recentemente vi um artigo no El Pais cujo (medonho) título era: “A França enfrenta o ‘perigo mortal’ da gramática feminista”. O texto explicava que um livro didático escrito pela professora Sophie Le Callenec (uma mulher, claro) em linguagem inclusiva provocou o maior auê. O ministro da Educação (um homem, claro), Jean-Michel Blanquer, argumentou que a escrita inclusiva do francês “fere a língua”. Já na Academia Francesa foi outra gritaria. Os senhores disseram: “Diante desta aberração inclusiva, a língua francesa se encontra em perigo mortal”. Aaaah, tá!

Quis entender melhor quem é essa tal de Academia Francesa e fui atrás da Matemática que a compõe: seus 34 membros são políticos, empresários e membros do clero (também há escritores), com média de 78 anos de idade; 30 são homens (88%) e, destes, 27 são brancos. Só para comparar com os números da França: 51% da população é de mulheres; 15% da população é de pessoas de cor e a média de idade é 40 anos. Isso sem contar que a Academia é uma instituição criada em 1763, o mesmo ano do Tratado de Paris, que tornou a França um dos maiores colonizadores da História.

Para estes homens, é mais importante não ferir as línguas do que as pessoas. E é disso também que Salas Rivera fala no seu poema: a morte simbólica que é não ter voz, que é ter alguém falando por em seu nome (“não consigo respirar nos porões”). Os franceses dizem que as feministas querem matar a língua, mas quem mata mesmo é o machismo ;)

No livro O perfil do monstro (Bertrand Editora, 2010), coletânea de entrevistas da escritora indiana Arundhati Roy, ela se refere inúmeras vezes à apropriação da linguagem por setores do poder corporativo:

“Até a linguagem foi alvo de apropriação por parte do poder. Se dizem ‘democracia’, na realidade estão dizendo ‘neoliberalismo’. Se dizem ‘reformas’, na verdade estão dizendo ‘repressão’. Tudo se transformou noutra coisa. Temos agora portanto de recuperar a linguagem”. Mais para frente, ela lembra: “Mas nada disso é novo. Chamaram de ‘urbanização’ o bombardeio das zonas rurais do Vietnã e chamaram de ‘danos colaterais’ o assassinato de crianças afegãs por drones americanos”.

Os dizeres de Roy se encaixam perfeitamente às reflexões propostas por Salas Rivera neste poema. Um dos exemplos de “recuperação” é a da palavra boricua – inicialmente usada nos EUA para nomear, pejorativamente, imigrante porto-riquenhos. A comunidade se apropriou do nome e retirou dele seu teor negativo, ressignificando-o e assim enfraquecendo a linguagem do racismo. O mesmo aconteceu com a comunidade gay, por exemplo, ao se apropriar de queer.

Pessoas subalternizadas precisam recuperar a língua, criar uma narrativa autônoma, que conte sua própria história. Esta é uma questão de ordem civil, mas respinga também na Filosofia. Clarice Lispector falava sempre da relação do nome com a coisa que ela nomeia, isso sem falar em Wittgenstein. Mas precisamos nos fazer outra pergunta, sobre a relação dos nomeados com os inventores dos nomes. Quem nos nomeou? E pra quê?

Quando Salas Rivera faz esses círculos – misturando o pessoal com o político, amor queer e capitalismo – me obriga a pensar onde língua e capitalismo se misturam. Não esqueçamos que 580 pessoas, das 7 bilhões que vivem no planeta Terra, têm dinheiro equivalente ao de 135 países do “terceiro” mundo. Desses 580 – 0,000008% da população mundial! – pelo menos 15 são francesas (aqueles que não querem que as feministas matem sua língua).

Se tem gente que tem pachorra de fazer isso com dinheiro, não ia ter gente capaz de querer ficar com a bola da linguagem todinha pra si? Claro que sim. Kiko não divide a bola com Chaves porque Chaves mora num barril, né, ‘mores.