Disponibilizamos o capítulo intitulado Um cão, um gato, um lobo e uma raposa do primeiro volume da triologia afrocentrada do escritor jamaicano Marlon James, Leopardo Negro, Lobo Vermelho. O livro será publicado pela Editora Intrínseca no dia 29 de janeiro de 2021. Marlon James propõe uma recuperação das narrativas, dos mitos, dos personagens e das paisagens da África, subvertendo os parâmetros e arquétipos tradicionais do gênero fantástico. Confira a resenha que publicamos sobre o livro, assinada pela tradutora e jornalista Virginia Siqueira Starling.
UM
A criança está morta. Não há mais o que saber.
Dizem que uma rainha no Sul mata o homem que lhe traz más notícias. Então, se anuncio a morte do menino, também escrevo a minha sentença? A verdade engole mentiras como o crocodilo engole a lua, mas meu testemunho é hoje o mesmo de amanhã. Não, eu não o matei. Contudo, eu quis, talvez, sua morte, desejando tal qual um esganado deseja carne de carneiro. Ah, puxar a corda do arco, disparar através de seu coração negro e vê-lo explodir sangue negro, vigiar seus olhos até o momento em que param de piscar e olham sem nada enxergar, escutar o rangido de sua voz e ouvir seu peito ofegar os suspiros da morte, dizendo “Veja, minha alma miserável está deixando meu corpo ainda mais miserável”, e sorrir com essas notícias, e dançar sobre essa perda. Sim, eu me regozijo só de pensar nisso. Mas não, eu não o matei.
Bi oju ri enu a pamo.
Nem tudo o que o olho vê deve ser dito pela boca.
Esta cela é maior do que a anterior. Sinto o cheiro do sangue seco de homens executados; ouço seus fantasmas, que ainda gritam. Seu pão tem carunchos, e sua água tem a urina de dez mais dois guardas e da cabra que eles foderam só por diversão. Devo lhe contar uma história?
Eu sou apenas um homem que alguns chamam de lobo. A criança está morta. Eu sei que a velhota traz notícias diferentes a você. “Chame- -o de assassino”, diz ela. Ainda assim, meu único arrependimento é não tê-la matado. Aquela ruiva disse que a cabeça da criança estava infes- tada de demônios. Isso se você acredita em demônios. Eu acredito em mau-olhado. Você parece ser um homem que jamais derramou sangue. Contudo, o sangue gruda entre os seus dedos. Um menino que você circuncidou, uma menina pequena demais para o seu grande... Olha só como isso te excita. Olha só pra você.
Eu vou te contar uma história. Ela começa com um Leopardo. E uma bruxa.
Inquisidor-geral.
Necromante.
Não, você não vai chamar os guardas.
Minha boca pode dizer coisas demais antes de ser calada pelos murros deles.
Olhe para você. Um homem com duzentas cabeças de gado que se deleita com um pedaço de pele de um menino e com a koo de uma garotinha que ainda não serve pra ser mulher de homem nenhum. É isso que você procura, não é? Uma coisinha obscura que não pode ser encontrada em trinta sacas de ouro, em duzentas cabeças de gado ou duzentas esposas. Algo que você perdeu — não, que foi tirado de você. Essa luz, você a vê e você a quer — não a luz do sol, nem a do deus trovão no céu da noite, mas uma luz sem máculas, a luz de um menino que não conhece mulheres, uma menina que você comprou como noiva, não porque você precisa de uma esposa, pois você tem duzentas cabeças de gado, mas uma esposa que você possa arregaçar, porque você procura por essa luz nos buracos, nos buracos escuros, nos buracos úmidos, nos buracos imaturos em que os vampiros também procuram, e você vai encontrá-la, você vai arrumá-la para a cerimônia, circuncisão para o menino e consumação para a menina, na qual eles derramam sangue, e saliva, e esperma, e urina na sua pele, e você leva tudo isso até a árvore iroko e usa qualquer buraco que encontrar.
A criança está morta, assim como todo mundo.
Eu andei durante dias, através dos enxames de moscas no Pântano de Sangue e das rochas cortantes nos desertos de sal, através do dia e da noite. Caminhei rumo ao Sul até Omororo e não sabia, nem me im- portava. Fui detido como mendigo, visto como ladrão, torturado como traidor e, quando as notícias sobre a morte da criança chegaram ao seu reino, preso como assassino. Sabia que havia cinco homens na minha cela? Quatro noites atrás. O lenço em meu pescoço pertence ao único homem que saiu daqui andando com as próprias pernas. Algum dia, o olho direito dele pode até voltar a enxergar.
Os outros quatro. Grave bem o que lhe digo.
Os mais velhos dizem que a noite é tola. Ela não julga, mas não anuncia o que está por vir. O primeiro veio até mim pela minha cama. Acordei em meio ao meu próprio estertor, e era um homem, apertando minha garganta. Mais baixo que um Ogo, porém, mais alto que um cavalo. Com cheiro de quem tinha destrinchado bode. Me pegou pelo pescoço e me ergueu no ar, e os outros homens ficaram quietos. Eu tentei soltar seus dedos, mas era a garra de um demônio. Chutar seu peito era como chutar uma rocha. Ele me deixou suspenso, como quem admira uma pedra preciosa. Dei uma joelhada em sua mandíbula, tão forte que os dentes cortaram sua língua. Ele me soltou, e eu avancei contra suas bolas como um touro. Ele caiu, eu peguei sua faca, bem afiada, e cortei sua garganta. O segundo segurou meus braços, mas eu estava nu e escorregadio. A faca — minha faca — eu cravei entre suas costelas e ouvi seu coração estourar. O terceiro homem gingava com pés e punhos, feito um inseto noturno, zunindo como um mosquito. Já eu fechei meu punho e estiquei dois dedos, como orelhas de coelho. Ferroei a polpa do seu olho esquerdo e arranquei a coisa toda lá de dentro. Ele gritou. Assistindo a seus berros no chão à procura pelo olho, esqueci dos outros dois homens. O gordo atrás de mim atacou, eu desviei, ele tropeçou, ele caiu, eu pulei, eu peguei a pedra que usava como travesseiro e esmurrei sua cabeça até sair um cheiro de carne do seu rosto.
O último homem era um garoto. Ele chorava. Estava atordoado de- mais para implorar por sua vida. Eu disse a ele que fosse homem em sua próxima vida, pois era menos que um verme nesta, e lancei a faca em seu pescoço. Seu sangue chegou ao chão antes de seus joelhos. Deixei o caolho viver, porque nós precisamos de histórias para nos sentirmos vivos, não é verdade... padre? Inquisidor. Não sei do que chamar você.
Mas esses não eram seus homens. Bom. Assim você não precisa cantar nenhum lamento para suas viúvas.
Você veio atrás de uma história e eu estou inclinado a contar, então os deuses devem ter sorrido para nós dois.
Havia um comerciante na Cidade Púrpura que disse ter perdido sua esposa. Ela havia desaparecido com cinco anéis de ouro, dez mais dois pares de brincos, vinte mais dois braceletes e dez mais nove tornoze- leiras. “Dizem que você tem um bom faro para encontrar coisas que preferem ficar perdidas”, ele disse. Em anos, eu estava perto dos vinte, há muito tempo expulso da casa de meu pai. O homem pensava que eu era algum tipo de cão de caça, mas eu disse sim, dizem que eu tenho um bom faro. Ele me jogou a roupa íntima de sua esposa. Seu cheiro estava tão fraco que mal se sentia. Talvez ela soubesse que, algum dia, homens viriam à caça, pois mantinha uma cabana em três aldeias diferentes, e ninguém era capaz de dizer em qual delas ela vivia. Em cada casa havia uma garota exatamente igual a ela e que atendia ao ser chamada pelo seu nome. A garota da terceira casa me convidou para entrar e me indicou um banco para que eu me sentasse. Ela perguntou se eu estava com sede e foi buscar um jarro de cerveja de masuku antes de eu dizer sim. Deixe-me lembrá-lo de que minha visão é ordinária, mas dizem que eu tenho um bom faro. Então, quando ela trouxe a caneca com a cerveja, eu já tinha farejado o veneno que ela havia colocado ali dentro, um veneno de esposa chamado baba-de-cobra, que perde o sabor quando misturado com água. Ela me entregou a caneca e eu a peguei, segurei sua mão e a torci para trás de suas costas. Encostei a caneca em seus lábios e a enfiei entre seus dentes. Suas lágrimas escorreram, e afastei a caneca.
Ela me levou até sua patroa, que morava numa cabana perto do rio. “Meu marido me bateu com tanta força que meu filho rebentou”, disse a patroa. “Eu tenho cinco anéis de ouro e dez mais dois pares de brin- cos, vinte mais dois braceletes e dez mais nove tornozeleiras, que eu darei a você, bem como uma noite em minha cama.” Eu peguei quatro tornozeleiras e a levei de volta ao seu marido, porque eu queria mais o dinheiro dele do que as joias dela. Depois, eu disse a ela para mandar a mulher da terceira cabana fazer cerveja de masuku para ele.
Segunda história.
Meu pai voltou pra casa uma noite trazendo o cheiro de uma pes- cadora. Ela estava no corpo dele, bem como a madeira de um tabuleiro de Bawo. E o sangue de um homem que não meu pai. Ele havia jogado uma partida com um binga, um mestre de Bawo, e perdido. O binga quis coletar seus ganhos, e meu pai pegou o tabuleiro de Bawo e o que- brou na testa do mestre. Ele disse que estava numa estalagem distante, para que pudesse beber, bolinar mulheres e jogar Bawo. Meu pai bateu no homem até ele parar de se mexer, e depois deixou o bar. Mas não havia nenhum traço de suor nele, nem muita poeira, nem cerveja em seu hálito, nada. Ele não esteve em um bar, e sim na alcova de ópio de um monge.
Então, Papai entrou em casa e gritou para que eu saísse do celeiro onde eu morava, pois ele havia me expulsado de casa.
— Venha, meu filho. Sente-se e jogue Bawo comigo — disse ele.
O tabuleiro estava no chão, mas faltavam várias peças. Peças demais para tornar possível um bom jogo. Mas meu pai estava interessado em vencer, não em jogar.
Claro que você conhece Bawo, necromante; não preciso explicar para você. Quatro fileiras de oito buracos no tabuleiro, cada jogador fica com duas. Trinta mais duas sementes para cada jogador, mas nós tínhamos menos que isso, não lembro quantas. Cada jogador coloca seis sementes no buraco nyumba, mas meu pai pôs oito. Eu teria dito: “Pa- pai, você está jogando ao estilo sulista, com oito em vez de seis?” Mas meu pai prefere bater do que falar, e ele já havia me batido por menos. Toda vez que eu colocava uma semente ele dizia “Capturei” e tomava ela de mim. Mas ele estava ávido por bebida e pediu vinho de palma. Minha mãe trouxe água para ele, e ele a puxou pelos cabelos, deu dois tapas nela e disse:
— Sua pele esquecerá estas marcas quando o sol cair.
Minha mãe não lhe daria a satisfação de vê-la chorar, então saiu dali e voltou com o vinho. Procurei o cheiro de veneno e teria ficado quieto se sentisse. Mas enquanto ele estava espancando minha mãe por ela usar feitiçaria para retardar o envelhecimento dela ou para acelerar o dele, acabou perdendo o jogo. Plantei minhas sementes, duas num buraco bem no final do tabuleiro, e capturei as dele. Isso não agradou meu pai.
— Você levou o jogo para a fase mtaji — afirmou ele.
— Não, nós estamos bem no começo — disse eu.
— Como você se atreve a falar comigo com esse tom de desrespeito?
Me chame de Papai quando falar comigo — ordenou ele.
Eu não disse nada e o encurralei no tabuleiro.
Ele não tinha mais nenhuma semente em sua fileira interna e não podia mais fazer nenhum movimento.
— Você roubou — disse ele. —Tem mais que trinta mais duas sementes no seu tabuleiro.
— Ou você está cego pelo vinho ou não sabe contar. Você pôs suas sementes, e eu as capturei. Então espalhei minhas sementes por toda minha fileira e construí uma barreira, mas você não tem semente para quebrá-la.
Ele me deu um soco na boca antes que eu pudesse dizer outra palavra. Eu caí do banco, e ele pegou o tabuleiro de Bawo para bater em mim do jeito que ele havia batido no binga. Mas meu pai estava bêbado e lento, e eu andava observando os mestres Ngolo praticando sua arte marcial perto do rio. Ele desferiu um golpe com o tabuleiro, e as se- mentes se espalharam voando pelo ar. Eu virei três cambalhotas para trás, como tinha visto eles fazendo, e me agachei como um guepardo preparado para o bote. Ele ficou me procurando como se eu tivesse desaparecido.
— Apareça, seu covarde — vociferou ele. — Você é covarde como sua mãe. É por isso que me dá prazer humilhá-la. Primeiro eu vou te dar uma surra, depois vou dar uma surra nela por ter criado você, e depois vou deixar uma marca para que vocês dois se lembrem de que ela criou um menino para ser a mulher de outros homens.
A fúria é uma nuvem que esvazia minha mente e faz meu coração escurecer. Eu pulava e chutava o ar, cada vez mais alto.
— Agora ele salta como um animal — caçoou ele.
Ele partiu pra cima de mim, mas eu não era mais um menino. Avancei contra ele dentro do casebre, mergulhei no chão com os bra- ços à frente, usei minhas mãos à guisa de pés, girei meu corpo para cima como uma roda, joguei as pernas girando para cima, voltei meus pés erguidos na sua direção e prendi seu pescoço com eles, puxando-o para baixo com força. Sua cabeça bateu no chão com tanta força que minha mãe, do lado de fora, ouviu o estrondo. Ela entrou correndo e gritou.
— Afaste-se dele, criança. Você arruinou tudo para nós dois.
Eu olhei para ela e cuspi. Depois, fui embora.
Há dois finais para essa história. No primeiro, minhas pernas prendem-se ao pescoço dele e o quebram quando eu o jogo no chão. Ele morre ali mesmo, e minha mãe me dá cinco búzios e um pouco de sorgo enrolado numa folha de palmeira e me manda embora. Digo a ela que não levarei nada que era dele, nem mesmo roupas.
No segundo final, eu não quebro o pescoço dele, mas ele ainda bate com a cabeça, que se abre e sangra. Ele acorda retardado. Minha mãe me dá cinco búzios e um pouco de sorgo enrolado numa folha de bananeira e diz: “Vá embora deste lugar, seus tios são todos piores do que ele.”
Meu nome era posse de meu pai, então o deixei para trás ao cruzar seu portão. Ele vestia-se com as melhores túnicas, sedas de terras que jamais conhecera, sandálias de homens que lhe deviam dinheiro, qual- quer coisa que o fizesse esquecer de que vinha de uma tribo ribeirinha. Eu deixei a casa de meu pai sem querer levar nada que me lembrasse dele. O chamado do instinto havia me alcançado mesmo antes de eu sair de lá, e quis tirar cada peça de roupa. Para ter cheiro de homem, de azedume e fedor, não a fragrância de mulheres da cidade e eunucos. As pessoas me olhariam com o mesmo desprezo que reservam para o povo do pântano. Antes que eu pise numa cidade ou em algum aposento, entra primeiro minha audácia, como uma fera orgulhosa. O leão não precisa de roupas, tampouco a cobra. Eu iria até Ku, de onde veio meu pai, mesmo sem saber como chegar lá.
Me chamo Rastreador. Já tive um nome algum dia, mas o esqueci há muito tempo.
Terceira história.
Uma rainha de um reino do Oeste disse que me pagaria muito bem se eu encontrasse o seu Rei. Sua corte achou que ela estava louca, pois o Rei estava morto, afogado fazia cinco anos, mas eu não tenho nenhum problema em encontrar mortos. Peguei o adiantamento e fui até o lugar em que viviam aqueles que morriam afogados.
Segui andando e encontrei uma velha senhora com um grande cajado sentada às margens de um rio. Cabelos brancos nas laterais da cabeça, careca no topo. Seu rosto tinha rugas feito trilhas em uma floresta, e seus dentes amarelos indicavam que seu hálito era podre. Dizem as lendas que ela acorda todas as manhãs jovem e bonita, amadurece linda e gra- ciosamente até o meio-dia, vira uma velha decrépita quando anoitece e morre à meia-noite, para renascer na hora seguinte. A corcunda em suas costas ficava mais alta que sua cabeça, mas os olhos cintilavam, sinal de que a mente era aguçada. Peixes nadavam exatamente até a ponta do cajado, mas nunca além.
— Por que você veio a este lugar? — perguntou ela. — Este é o caminho para Monono — respondi.
— Por que você veio até este lugar? Um homem vivo?
— Vida é amor, e não me resta mais amor nenhum. O amor escorreu de mim e desaguou num rio como este.
— Não foi amor que escorreu de você, foi sangue. Vou deixar você passar. Mas quando me deito com um homem, vivo sem morrer por setenta luas.
Então eu fodi com a velha decrépita. Ela deitou suas costas na margem, seus pés dentro do rio. Ela era só pele e ossos, mas me deixou duro e cheio de vigor. Algo nadava entre as minhas pernas, pareciam ser peixes. Sua mão tocou meu peito, e minhas listras de argila branca se transformaram em ondas no entorno do meu coração. Eu entrava e saía de dentro dela, desconcertado pelo seu silêncio. No escuro ela parecia estar ficando mais jovem, muito embora estivesse ficando mais velha. Chamas se espalharam pelo meu interior, chegando às pontas dos meus dedos e à ponta do meu corpo que estava no interior dela. O ar se reuniu ao redor da água, a água se reuniu ao redor do ar, e eu gritei, tirei de dentro, e chovi em sua barriga, seus braços e seus seios. Um arrepio percorreu cinco vezes meu corpo. Ela ainda era uma velha decrépita, mas eu não estava bravo. Ela limpou minha chuva do seu peito e a jogou dentro do rio. Imediatamente, os peixes começaram a saltar para fora da água e mergulhar, saltando de novo. Era uma daquelas noites em que a escuridão devora a lua, mas os peixes tinham uma luz dentro de si. Os peixes tinham cabeça, braços e seios de mulheres.
— Siga-os — orientou ela.
Eu os segui pelo dia e pela noite, e novamente pelo dia. Às vezes o rio era tão raso que batia no meu tornozelo. Às vezes era tão fundo que batia no meu pescoço. A água lavou todo o branco do meu corpo, livrando apenas meu rosto. Os peixes-mulher, as mulheres-peixe, me guiaram pelo rio por dias e dias e mais dias até chegarmos a um lugar que não consigo descrever. Ou aquilo era uma parede feita de água do rio, que permanecia sólida embora eu pudesse fazer minha mão atraves- sá-la, ou o rio havia se dobrado para baixo e eu ainda conseguia andar, meus pés tocando o chão, meu corpo erguido, sem cair.
Às vezes, a única maneira de prosseguir é atravessando. Então, eu atravessei. Eu não senti medo.
Não sei dizer se parei de respirar ou se estava respirando debaixo d’água. Mas segui andando. Peixes do rio me cercaram como se pergun- tando minhas intenções. Eu segui andando, a água ao meu redor ondu- lando meus cabelos, enxaguando meus braços. Então me deparei com uma coisa que jamais havia visto em reino nenhum. Um castelo feito de pedra numa planície coberta de grama, com dois, três, quatro, cinco, seis andares. Em cada canto, uma torre com uma cúpula, também feita de pedra. Em cada andar, janelas cortadas na pedra, e abaixo de cada ja- nela, um espaço cercado por grades douradas denominado terraço. Da construção partia um corredor que a conectava a outra construção e a outro corredor que a conectava a outra construção, e assim havia quatro castelos ligados uns aos outros, dispostos num quadrado.
Nenhum dos castelos era tão grande quanto o primeiro, e o último estava em ruínas. O momento em que a água desapareceu, deixando pe- dras, grama e céu, não sei dizer. Havia árvores numa linha reta até onde a visão alcançava, jardins quadrangulares e flores em círculos. Nem mes- mo os deuses tinham um jardim como aquele. Passava do meio-dia, e o reino estava vazio. Ao fim da tarde, que chegou rápido, brisas sopravam para cima e para baixo, e ventos impiedosos me atropelavam como ho- mens gordos com pressa. Enquanto o sol se punha, homens, mulheres e feras surgiam no campo de visão e sumiam, aparecendo nas sombras, desaparecendo por entre os últimos raios de sol, aparecendo de novo. Sentei nos degraus do castelo maior e fiquei observando enquanto o sol mergulhava no escuro. Homens, andando ao lado de mulheres, e crianças que pareciam homens, e mulheres que pareciam crianças. E os homens eram azuis, e as mulheres eram verdes, e as crianças eram amarelas, com os olhos vermelhos e guelras no pescoço. E criaturas com cabelos de grama, e cavalos com seis pernas, e manadas de abadas com pernas de zebra, lombos de burro e chifres de rinoceronte na fronte correndo ao lado de outras crianças.
Uma criança amarela veio até mim e disse: — Como você chegou aqui?
— Eu vim pelo rio.
— E a Itaki deixou você passar?
— Não sei dessa Itaki, só encontrei uma velha com cheiro de musgo.
A criança amarela ficou vermelha, e seus olhos ficaram brancos. Seus pais vieram buscá-la. Eu fiquei de pé, subi os vinte degraus e entrei no castelo, onde mais homens, mulheres, crianças e feras riam e conversavam e falavam e fofocavam. No fim do corredor havia uma parede pintada com cenas de guerra e guerreiros esculpidos em bronze, uma das quais reconheci como sendo a batalha das terras do meio, onde quatro mil homens foram mortos, e outra como a batalha do Príncipe Caolho, que conduziu seu exército inteiro a um precipício que confundiu com um monte. Encostado nessa parede havia um trono de bronze, que fazia o homem sentado nele parecer pequeno como um bebê.
— Estes não são os olhos de um homem temente a Deus — disse ele.
Eu sabia que aquele era o Rei, pois quem mais seria?
— Eu vim para levá-lo de volta ao mundo dos vivos — expliquei.
— Até mesmo na terra dos mortos ouviram falar de você, Rastreador. Mas você desperdiçou seu tempo e arriscou sua vida por nada. Eu não vejo nenhum motivo para retornar, nenhum motivo para mim, ne- nhum motivo para você.
— Eu não tenho motivo para coisa alguma. Eu encontro o que as pessoas perderam, e a sua Rainha perdeu você.
O Rei riu.
— Estamos aqui em Monono, onde você é a única alma viva e, ao mesmo tempo, o homem mais morto de toda esta corte — disse ele.
Inquisidor, eu queria que as pessoas entendessem que eu não tenho tempo para discussões desse tipo. Eu não disputo por ninguém e nada me fará disputar, então, não me faça perder tempo com discussões. Erga seus punhos e eu irei quebrá-los. Mostre sua língua e eu irei arrancá-la de sua boca.
O Rei não tinha guardas na sala do trono, então fui em sua direção, observando a multidão me observar. Ele não se empolgou nem ficou assustado, trazia em seu semblante apenas uma inexpressividade que dizia: “Estas são as coisas que devem acontecer a você.” Quatro degraus me conduziam à plataforma sobre a qual assentava seu trono. Dois leões estavam a seus pés, tão imóveis que eu não era capaz de distinguir se eram feitos de carne, espírito ou pedra. Ele tinha um rosto redondo com uma papada que era como um segundo queixo, grandes olhos negros, um nariz achatado com duas argolas, e uma boca fina, como se tivesse sangue oriental. Usava uma coroa dourada sobre um lenço branco que escondia seu cabelo, um manto azul com pássaros prateados, e um pei- tilho púrpura por cima do manto, com uma borda de ouro. Eu poderia tê-lo dominado usando apenas um dedo.
Fui andando direto até o trono. Os leões nem se mexeram. Toquei o apoio para braço, esculpido em bronze na forma de uma pata de leão virada para cima, e se ouviram trovões sobre a minha cabeça, pesados, lentos, soando sombrios e lançando um cheiro pútrido ao vento. No teto, lá em cima, nada. Eu ainda estava olhando pra cima quando o Rei enfiou um punhal na palma da minha mão com tanta força que atraves- sou o braço do trono e ficou preso nele.
Eu gritei; ele riu e se acomodou em seu trono.
— Você pode achar que o submundo cumpre a promessa, ser uma terra livre de dor e sofrimento, mas essa é uma promessa que é feita aos mortos — disse ele.
Ninguém riu mais com ele, mas ficaram assistindo.
Ele ficou olhando para mim com olhos desconfiados, coçando seu queixo enquanto eu arrancava o punhal cravado em minha mão, o pu- xão me fazendo urrar. O Rei tomou um susto quando eu o segurei, mas apenas cortei o rabo do seu manto, arrancando um pedaço fora. Ele ria enquanto eu enfaixava a mão ferida. Dei um soco bem no meio da sua cara, e só então ouviu-se um murmúrio na multidão. Ouvi os passos mortíferos vindo em minha direção, então me virei. A multidão parou.
Não, foi contida. Não havia nada no rosto daquelas pessoas, nem raiva nem medo. Então, a multidão recuou como um todo, olhando para o Rei às minhas costas, de pé, segurando a pata ensanguentada do leão. O Rei jogou a pata para cima, em direção ao teto, e a multidão se ad- mirou. A pata não caiu de volta. Alguns no fundo começaram a correr. Alguns gritaram, outros berraram. Homens pisotearam mulheres, que pisotearam crianças. O Rei continuava rindo. Então, ouviu-se um ran- gido, depois um rasgo, depois uma fratura, como se os deuses do céu estivessem arrebentando o telhado. Omoluzu, disse alguém.
Omoluzu. Andarilhos de telhado, demônios noturnos de uma era anterior a essa.
— Eles sentiram o gosto do seu sangue, Rastreador. Os Omoluzu nunca mais vão parar de te seguir.
Segurei sua mão e fiz um corte nela. Ele urrou como uma ribeirinha enquanto o telhado começou a se deformar, parecendo rachar e se quebrar e estalar, embora permanecesse intacto. Segurei sua mão sobre a minha e coletei seu sangue enquanto ele me estapeava e socava, como um garotinho tentando se soltar. A primeira forma emergiu do teto quando joguei o sangue do Rei para cima.
— Agora, nossos destinos estão entrelaçados — afirmei.
Seu sorriso desapareceu, ele ficou boquiaberto e arregalou os olhos. Arrastei-o pelos degraus enquanto o teto rugia e se partia. Homens ne- gros de corpo, negros de rosto, negros onde os olhos deveriam estar, impulsionavam-se para fora do teto como se saíssem de dentro de bura- cos. Quando enfim emergiam, ficavam de pé no teto como nós ficamos no chão. Dos Omoluzu saíam lâminas de luz, afiadas como espadas e quentes como carvão em brasa. O Rei fugiu gritando, deixando sua es- pada para trás.
Eles atacaram. Comecei a correr, ouvindo-os saltar do teto. Eles pulavam e não caíam no chão, mas aterrissavam novamente no teto, como se estivessem de cabeça para baixo. Fui em direção ao pátio externo, mas dois deles foram mais rápidos do que eu, saltando para o chão e erguendo as espadas. Minha lança defendeu os dois golpes, mas sua força me derrubou. Um avançou sobre mim brandindo a arma. Esquivei para a esquerda, desviei da lâmina e enterrei minha lança em seu peito. Ela entrou devagar, como se estivesse perfurando piche. Ele deu um pulo para trás, levando minha lança com ele. Peguei a espada do Rei. Dois às minhas costas me pegaram pelos tornozelos e me levaram até o teto, lá para cima, onde as trevas serpenteavam como o mar noturno. Brandi a espada na escuridão, decepei os braços de ambos e caí no chão como um gato. Outro tentou pegar minha mão, mas fui mais rápido e o puxei para o chão, onde ele se dissolveu como fumaça. Um veio pelo meu lado, e eu me esquivei, mas sua lâmina atingiu minha orelha, fazendo ar- der. Virei-me e as lâminas de nossas espadas se chocaram, fazendo faíscas estalarem no escuro. Ele recuou. Minhas mãos e pés se moviam como as de um mestre Ngolo. Rolei no chão e saí correndo, mão, depois pé, depois mão, até encontrar minha lança, perto da área externa. Havia mui- tas tochas acesas. Corri até a primeira e mergulhei minha lança no óleo e nas chamas. Dois Omoluzu estavam bem acima de mim. Eu os ouvi empunharem as lâminas para me cortar em dois, mas dei um salto com minha lança incandescente e os transpassei. Ambos foram consumidos pelas chamas, que se espalharam pelo teto. E então se dispersaram.
Corri pela área externa, atravessei o corredor e saí porta afora. Na rua, a lua brilhava fraca, como luz atravessando um vidro embaçado. O pequeno Rei gordo nem sequer havia fugido.
— Os Omoluzu só aparecem onde há um teto. Eles não conseguem andar no céu aberto — explicou ele.
— A sua esposa vai amar essa história.
— O que você sabe do amor que alguém sente por outro alguém? — Vamos agora.
Comecei a empurrá-lo, mas havia outra passagem, com cerca de quarenta metros. Após cinco passos, o teto começou a rachar. Com dez passos, eles já corriam pelo teto tão rápido quanto corríamos pelo chão, e o pequeno Rei gordo estava ficando para trás. Dez mais cinco passos, e me abaixei para desviar de uma espada brandida na direção da minha cabeça e que derrubou a coroa do Rei. Perdi as contas depois de dez mais cinco. Na metade do caminho, peguei uma tocha e a joguei no teto. Um dos Omoluzu irrompeu em chamas e caiu, mas se esvaiu em fumaça antes de tocar o chão. Disparamos para fora mais uma vez. Ao longe se via o portão, com um arco de pedras que provavelmente era extenso o bastante para os Omoluzu aparecerem. Mas quando passamos correndo por baixo dele, dois saltaram de lá e um conseguiu desferir um golpe em minhas costas. Em algum ponto entre a corrida em direção ao rio e a saí- da pela parede de água, desapareceram tanto meus ferimentos quanto a lembrança de onde eles estavam. Procurei por eles, mas minha pele não tinha marca nenhuma.
Grave o seguinte: a jornada até o reino dele foi muito mais longa do que a jornada em direção à terra dos mortos. Dias se passaram até en- contrarmos a Itaki na margem do rio, mas ela não era mais uma velha, e, sim, uma garotinha brincando na água, embora tenha olhado para mim da mesma maneira furtiva que uma mulher com quatro vezes a sua ida- de. Quando a Rainha encontrou seu Rei, ela ralhou e praguejou e bateu nele com tanta força que eu soube ser uma questão de dias até que ele se afogasse novamente.
Conheço bem esse pensamento que acaba de passar pela sua cabeça. E todas as histórias são verdadeiras.
Há um teto sobre as nossas cabeças.