Conceição Evaristo completa, no dia 29 de novembro, 70 anos. Mulher negra e de origem humilde, é uma das mais contundentes escritoras da literatura contemporânea brasileira. É uma autora profundamente comprometida com a crítica social, a ancestralidade cultural, com as questões relativas à existência da mulher. Por esse trabalho, Evaristo é uma das escritoras que melhor nos ajudam a pensar e (praticar, como leitores) a ideia de a literatura como exercício de alteridade.
O inédito deste sábado é do livro Escrevivências: identidade, gênero e violência na obra de Conceição Evaristo (Editora Idea). Trata-se de uma coletânea de artigos científicos sobre a obra da escritora, todos em linguagem acessível. A obra é organizada pelas pesquisadoras Constância Lima Duarte, Cristiane Côrtes e Maria do Rosário A. Pereira. Para mais informações sobre a obra - que será lançada ainda neste mês -, interessados devem escrever ao email Este endereço de email está sendo protegido de spambots. Você precisa do JavaScript ativado para vê-lo..
O primeiro trecho abaixo é assinado por Marcos Antônio Alexandre e versa sobre a enunciação da escrita em Evaristo, processo que pode ser sintetizado pelo termo “escrevivência”; e o segundo, por Simone Pereira Schmidt, estuda o livro Becos da Memória – livro que completa dez anos em 2016 –, abordando o tratamento da favela, suas relações com a senzala, o processo de desfavelização, entre outros.
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Maria da Conceição Evaristo nasceu em Belo Horizonte em 1946 e, desde os anos 70, está radicada no Rio de Janeiro onde concluiu o mestrado em Literatura Brasileira, pela PUC-RIO, e o seu doutorado em Literatura Comparada, pela UFF, em 2011. Desde os anos 90, começou a publicar nos Cadernos Negros e tem escrito contos, poesias, ensaios e romances em que os negros aparecem como protagonistas e não, simplesmente, como “sombras tênues” como pode ser observado na grande maioria das obras da Literatura Brasileira canônica dos séculos XIX e XX. A obra literária de Conceição Evaristo é voltada para a ressignificação das identidades e enunciações negras. Em seus textos, os afrodescendentes são o centro de sua letra contestatória, palavras reminiscências de memórias que nos permitem repensar os lugares de representação aos quais os sujeitos negros são e estão relegados em nossas sociedades. Assim, a escritora, por meio de sua obra ensaística e literária, não defende apenas uma escrita negra, mas uma escrita das [sobre as] mulheres negras, aspecto que considero fundamental para leitura de seus romances, poemas e contos.
[…] [nota 1]
A enunciação da escrita de Evaristo, os traços e ecos das reminiscências mnemônicas que fundamentam os seus textos podem ser observados no ensaio “Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita”. Neste texto, construído e constituído por uma linguagem e um formato híbrido – ensaio, depoimento, prosa contista e poética, testemunho –, a autora se impõe o seguinte questionamento: “O que levaria determinadas mulheres, nascidas e criadas em ambientes não letrados, e quando muito, semi-alfabetizadas, a romperem com a passividade da leitura e buscarem o movimento da escrita?” (EVARISTO. In: ALEXANDRE, 2007, p. 20) [nota 2]; e, logo, ela o contesta reforçando a sua visão crítica:
Tento responder. Talvez, estas mulheres (como eu) tenham percebido que se o ato de ler oferece a apreensão do mundo, o de escrever ultrapassa os limites de uma percepção da vida. Escrever pressupõe um dinamismo próprio do sujeito da escrita, proporcionando-lhe a sua auto inscrição no interior do mundo. E, em se tratando de um ato empreendido por mulheres negras, que historicamente transitam por espaços culturais diferenciados dos lugares ocupados pela cultura das elites, escrever adquire um sentido de insubordinação. Insubordinação que se pode evidenciar, muitas vezes, desde uma escrita que fere “as normas cultas” da língua, caso exemplar o de Carolina Maria de Jesus, como também pela escolha da matéria narrada (p. 20- 21, grifos meus) [nota 3].
A autora conclui os seus argumentos de forma contundente: “A nossa escrevivência não pode ser lida como histórias para “ninar os da casa grande” e sim para incomodá-los em seus sonos injustos.” (p. 21, grifo da autora) [nota 4]. Os dizeres de Evaristo, ao utilizar o conceito de “escrevivência”, ampliam e ressignificam a discussão aqui empreendida relacionada à questão da escritura negra, mais especificamente, no campo relacionado à escrita feminina. O “movimento de sua escrita” revela diversas temáticas que se relacionam às identidades negras. Suas palavras se inscrevem num espaço de reflexão que é reverberado por uma linguagem performática em que a autora escreve e se inscreve a partir de uma memória corporal que redefine o seu lugar enunciação em nossa contemporaneidade.
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O romance de Conceição Evaristo, Becos da memória, escrito nos anos oitenta, foi publicado pela primeira vez apenas em 2006. Este significativo intervalo entre o momento de sua escritura e o de sua publicação é por si só revelador das imensas dificuldades que enfrentam, em geral, aqueles que, vindos de lugares distantes dos centros – sejam eles geográficos, sociais, econômicos –, lutam para transpor essas barreiras. Felizmente, Becos da memória conquistou reconhecimento crescente junto ao público leitor, merecendo outra edição, pela Editora Mulheres, em 2013. A narrativa deste belo romance começa por celebrar aqueles que, com suas vidas, constituíram a matéria de que são povoados os ‘becos’ da memória viva que aqui se transforma em escrita: “(…) Homens, mulheres, crianças que se amontoaram dentro de mim, como amontoados eram os barracos da minha favela” (EVARISTO, 2013, p. 30) [nota 5]. Nesta espécie de pórtico ao relato, a autora nos apresenta aos personagens de forma ampla, como a compor um quadro que se irá detalhar em cores e traços na continuidade da narrativa.
Assim, o romance inicia deixando claro quem são os sujeitos que pretende representar. […] Para a construção de seu romance, a autora tomará como mote a estrutura sinuosa e múltipla dos becos da favela, que, percorridos pela narradora, mostram-se, a um só tempo, iguais e diversos, múltiplos, tortuosos, promissores, cheios de histórias de vida. A narrativa que a partir de então se desdobra é feita de pequenos relatos, breves histórias de vida de muitos personagens, homens, mulheres e crianças da favela. Nessas histórias vemos posta em prática a perspectiva benjaminiana de história (BENJAMIN, 1993) [nota 6], que privilegia o fragmento sobre a totalidade, a alegoria sobre o símbolo, dentro de uma compreensão mais profunda de que a história, tradicionalmente divulgada na perspectiva dos vencedores, pode ser escrita a contrapelo, dando vez a versões pequenas, mínimas, fragmentárias de vidas comuns, nem heroicas nem exemplares, pequenas vidas de personagens em cujos percursos se conjugam derrotas advindas de sua condição social, racial e de gênero. É nesse sentido que o trabalho das lavadeiras ocupa posição central na narrativa, sintetizando a atividade incansável dos corpos das mulheres da favela, em constante esforço de gerar e garantir a vida, enfrentando pobreza e violência. Corpos que atuam por vezes como único capital simbólico dos sujeitos negros, como assinalou Stuart Hall (2003) [nota 7], identificando neles verdadeiras “telas de representação” de sua experiência. São todas personagens femininas que atualizam, em suas histórias de vida e em seus próprios corpos, uma relação repetidamente evocada na narrativa: a aproximação entre senzala e favela.
Esta relação, senzala-favela, se atualiza no romance de duas formas. Primeiramente, na memória da escravidão, frequentemente relatada pelos mais-velhos, em histórias nas quais rememoram sua infância passada em fazendas, senzalas, plantações e enfrentamentos com os sinhôs. Num segundo plano, o mais vívido no romance, a relação da senzala com a favela se atualiza na geografia dos becos onde se vivencia a condição subalterna dos seus moradores. Através deste fio que une o passado colonial e escravocrata com as profundas desigualdades vivenciadas na pele pelos descendentes dos escravos nas cidades de hoje, uma outra história da literatura brasileira, e de seus personagens, sem dúvida está a ser feita neste momento.
Enquanto, em Becos da memória, se desenrolam as histórias dos personagens, a grande tensão que une todas as suas experiências é o crescente processo de desfavelamento, que culminará por expulsá-los a todos do único lugar a que pertencem, e que supostamente também lhes pertencia. A violência extrema da destruição da favela sinaliza dentro da narrativa a reiterada vitória dos mais fortes em nossa sociedade, fenômeno que aponta para o “enigma da desigualdade” explicitado por Osmundo Pinho (2009) [nota 8], que entrelaça, de forma continuada em nossa história, os índices que associam pertencimento racial e de classe.
Notas
nota 1: Todos os símbolos “[...]” são de autoria do Suplemento Pernambuco, responsável pela seleção e edição que consta acima. As inserções entre parênteses – “(...)” – foram feitas pelos autores dos trechos aqui expostos.
nota 2: EVARISTO, Conceição. Da grafia-desenho de minha mãe, um dos lugares de nascimento de minha escrita. In: ALEXANDRE, Marcos Antônio (org.) Representações performáticas brasileiras: teorias, práticas e suas interfaces. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2007. p. 16-21.
nota 3: Trata-se do mesmo livro da nota um. A expressão “grifos meus” se refere ao destaque em negrito, feito pelo autor do artigo, e não pela escritora Conceição Evaristo, autora do trecho.
nota 4: Mesmo livro da nota um. A expressão “grifo da autora” se refere à palavra “escrevivência”, em itálico. Esse grifo foi feito pela escritora Conceição Evaristo no texto original.
nota 5: EVARISTO, Conceição. Becos da memória. 2. ed. Florianópolis: Mulheres, 2013.
nota 6: BENJAMIN, Walter. Teses sobre a Filosofia da História. In: _______. Sobre arte, técnica, linguagem e política. Lisboa: Relógio D’Água, 1993. (espaço após o “In:” indica que o autor do livro e do capítulo são a mesma pessoa – no caso, o filósofo Walter Benjamin).
nota 7: HALL, Stuart. “Que ‘negro’ é esse na cultura negra?”. In: ___. Da diáspora: identidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. p. 335-349.
nota 8: PINHO, Osmundo. O enigma da desigualdade. In: TORNQUIST, Carmen S. et al. (Org.). Leituras de resistência: corpo, violência e poder. Florianópolis: Mulheres, 2009. v. I. p. 367-388. (O termo “et al” indica a existência de outros organizadores da obra).