Eduardo Góes Neves é um dos principais nomes da arqueologia brasileira. Em Sob os tempos do equinócio: Oito mil anos de história na Amazônia central (Ubu Editora/ Edusp), ele realiza uma síntese do que se sabe dos 8 mil anos de ocupação indígena da Amazônia central, região na qual ele e seus colegas realizaram escavações entre 1995 e 2010, no âmbito do Projeto Amazônia Central. Escrito para um público amplo, o livro oferece uma apresentação do ofício da arqueologia e expõe os resultados de pesquisas recentes na região, desdobrando a discussão para outros contextos da arqueologia das terras baixas da América do Sul.
Contrariando o senso comum de que a região teria sido ocupada por populações nômades isoladas, os achados arqueológicos de Neves e seus colaboradores revelam, ao contrário, a riqueza do processo de ocupação da Amazônia central no longo período transcorrido desde o início do Holoceno, cerca de 10 mil anos atrás, até os primeiros momentos da colonização europeia, no século XVI. Praticamente em qualquer área da Amazônia onde há pesquisas, a arqueologia vem encontrando evidências de ocupações humanas no passado, mesmo em locais cobertos por floresta aparentemente virgem.
Se, historicamente, a Amazônia foi tratada como uma região onde imperava a incompletude (sem agricultura, sem Estado, sem história, sem cidades, sem escrita etc.), desde a virada do milênio tem ocorrido uma revisão radical desses pressupostos. Atualmente, sabe-se que a Amazônia é habitada há pelo menos 12 mil anos, por diferentes povos, com distintas formas de organização social e política. Como argumenta Neves, talvez a lição mais importante trazida pela arqueologia amazônica nas últimas décadas tenha sido mostrar que não existe na região nenhuma barreira natural à ocupação humana, à inovação e à invenção — o que deixa evidente que incompleta é a nossa capacidade de entender a Amazônia em seus próprios termos.
Uma das ideias que você busca desmontar é a de que a arqueologia estuda o passado. Ao contrário, você argumenta que ela estuda fenômenos do presente. De que forma essa mudança de perspectiva contribui para um outro entendimento sobre regimes de historicidade? Qual é, afinal, o objeto de estudo da arqueologia?
Eu falo no livro que é errado pensar que a arqueologia estuda o passado, porque o passado de fato não existe mais. O que a gente estuda são coisas que foram produzidas no passado, mas que chegaram até nós no presente. Fazer essa distinção é importante porque os objetos e os contextos têm biografias que vão se transformando ao longo do tempo, impondo para nós os limites e as possibilidades de entendimento do próprio passado. Talvez o sítio arqueológico mais famoso do mundo seja Pompeia. E na verdade Pompeia é uma grande exceção, porque a erupção do Vesúvio suspendeu as atividades que estavam ocorrendo naquele local. Em geral, um sítio arqueológico é um local repleto de ruídos, ao qual tentamos impor algum sentido. Tentando ser direto na minha resposta, eu diria que o objeto de estudo da arqueologia são as coisas, ou, em outros termos, a materialidade. Essas coisas podem ser objetos, artefatos ou materiais como restos de comida, ossos, sementes, amostras de solo e até a própria paisagem. A arqueologia é uma ciência social que estuda coisas que têm dimensões materiais, para tentar entender relações sociais que se deram num passado muito antigo, e também num passado recente. Uma coisa interessante da arqueologia contemporânea é que ela não tem mais um limite cronológico, a gente pode trabalhar com coisas que aconteceram há milhares de anos e com coisas que aconteceram há poucas décadas. Se a gente for pensar, por exemplo, na resistência à ditadura militar aqui no Brasil, existem inúmeras histórias que foram silenciadas. São poucos os documentos escritos sobre a Guerrilha do Araguaia. Um jeito de buscar entender essa história é investigar os objetos que foram produzidos ao longo desses episódios, há mais ou menos 50 anos.
Um dos grandes méritos do seu livro é oferecer uma imagem que se contrapõe radicalmente ao que você chamou de “princípio da incompletude”: a ideia de que algo sempre faltou à Amazônia. Ao se debruçar sobre os 8 mil anos de ocupação indígena da Amazônia central, desdobrando a discussão para outros contextos da arqueologia das terras baixas da América do Sul, você argumenta que a história do Brasil anterior à invasão europeia é riquíssima e muito relevante para o entendimento do lugar que o Brasil ocupa no planeta. Em linhas gerais, que histórias revelam os mais de 6 mil sítios arqueológicos identificados na Amazônia?
Escrevi o livro pensando em atingir um público mais amplo, indo além do público acadêmico, porque eu percebo que apesar dos inúmeros avanços que a arqueologia tem feito nos últimos anos aqui no Brasil (e são avanços bastante importantes!), existe um desconhecimento muito grande por parte do público geral sobre a nossa história antiga. Você deve se lembrar que no livro eu defendo que a gente não deve mais usar o termo “pré-história” para falar do passado remoto aqui no Brasil, e sim “história antiga”, que me parece mais apropriado. Esses mais de 6 mil sítios arqueológicos identificados na Amazônia nos revelam uma diversidade cultural muito grande, com formas de vida muito diferentes umas das outras. Existe uma visão bastante simplista que empacota os povos indígenas numa categoria única. O que busco mostrar no livro é que as histórias antigas da Amazônia são marcadas pela diversidade cultural, manifestadas em diferentes tipos de sítios arqueológicos, em diferentes tradições artísticas e tecnológicas. Algo que a gente deve levar em consideração é o fato de que algumas inovações importantes no quadro da presença indígena nas Américas aconteceram antes na Amazônia. Uma delas é a domesticação de plantas. Nós temos outros centros de domesticação de plantas aqui no continente, mas a Amazônia foi um centro muito antigo. Outro elemento foi a produção da cerâmica. As cerâmicas mais antigas conhecidas nas Américas foram inicialmente produzidas na Amazônia. Eu espero ter conseguido demonstrar que a gente tem um quadro histórico muito rico e diversificado, e que os povos indígenas da Amazônia têm um papel fundamental na construção do que se poderia chamar de “civilizações indígenas do Novo Mundo”.
Você poderia apresentar um pouco da sua trajetória de pesquisa na Amazônia central?
A primeira vez que eu fui para Amazônia trabalhar em uma pesquisa arqueológica foi em 1986, quando eu ainda era estudante de graduação. Eu fiquei fascinado e desde então tenho me dedicado à pesquisa na Amazônia. Eu fiz meu doutorado na região do Alto Rio Negro, perto da fronteira do Brasil com a Colômbia. A pesquisa na Amazônia central surgiu de uma parceria com um grande amigo meu, arqueólogo e professor da Universidade da Flórida (EUA), chamado Michael Heckenberger. Michael trabalhava e trabalha até hoje no Alto Xingu. Nós resolvemos montar um projeto perto de Manaus, porque essa região da Amazônia central era muito mal conhecida arqueologicamente. Algumas pesquisas prévias mostravam que ali existia uma riqueza de formas de ocupação muito grande. Além disso, havia a hipótese, colocada por outros colegas — nossos mestres, na verdade —, de que aquela era uma região de ocupação humana muito antiga e contínua no quadro da Amazônia e da América do Sul. A gente foi a campo em 1995 para testar essas hipóteses. Uma vantagem é que essa é uma região amazônica com um contexto logístico relativamente mais fácil, então a gente podia trazer alunas e alunos para participar das escavações e aprender técnicas de campo. Nós tivemos uma relação muito bacana com a Prefeitura de Iranduba, município localizado na Região Metropolitana de Manaus, que nos permitiu fazer um trabalho muito legal nas salas de aula. Alguns desses estudantes são hoje arqueólogas e arqueólogos, trabalham e vivem da arqueologia. Nós criamos ainda um curso de graduação em arqueologia em Iranduba, pela Universidade do Estado do Amazonas. Foram mais de 15 anos de pesquisa na região. Além da própria investigação arqueológica, essas experiências me permitiram conhecer muita gente, construindo vínculos que continuam até hoje.
Seu trabalho dialoga com importantes nomes da antropologia social, entre eles Claude Lévi-Strauss (1908–2009), Marshall Sahlins (1930–2021) e Pierre Clastres (1934–1977). Outro nome que aparece nas páginas do seu livro é o de David Graeber (1961-2020), antropólogo que, pouco antes de morrer, em 2020, finalizou com o arqueólogo David Wengrow uma obra bastante ambiciosa: O despertar de tudo: Uma nova história da humanidade (lançada no Brasil pela Companhia das Letras). Como você observa esse diálogo entre arqueologia e antropologia nos dias de hoje, em especial nas pesquisas realizadas na Amazônia?
Eu fiz meu doutorado nos Estados Unidos, e lá a formação em arqueologia é muito ligada à antropologia. Então, minha formação como arqueólogo se deu a partir de um diálogo forte e muito importante com a antropologia social. A isso se somou o fato de o Brasil ter uma tradição maravilhosa de produção antropológica. A antropologia brasileira é uma antropologia que tem ressonância internacional. Nós temos autores e autoras que são referência para o mundo inteiro. Para alguém que, assim como eu, pensa que a arqueologia é uma fonte para entender as histórias dos povos indígenas, é inevitável conhecer essa tradição intelectual. Pierre Clastres trabalhou no entorno do Brasil. Marshall Sahlins nunca trabalhou aqui, mas sempre teve interlocução com a antropologia local. Lévi-Strauss obviamente trabalhou aqui. Esses autores, grandes pensadores da antropologia, têm direta ou indiretamente uma relação com os povos indígenas do Brasil. Eu não conhecia o David Graeber, mas conheço o David Wengrow. O despertar de tudo é um livro maravilhoso! Eu li depois de já ter escrito o meu, e vejo que há uma ressonância muito grande entre o que eles escrevem e as ideias que eu defendo para a Amazônia, como, por exemplo, falar em cidades mesmo sem a presença do Estado. Eu escrevi a primeira versão do meu livro em 2013. Muito da reflexão que eu coloco nele vem da minha própria prática de pesquisa. Eu achava que algumas dessas ideias tinham um valor muito grande para a Amazônia, mas eu não sabia até que ponto elas tinham validade para outros contextos do planeta. Há uma série de ideias em ambos os livros que aparentemente não fazem sentido, e que são até um pouco dissonantes. O Graeber, antropólogo que faleceu precocemente em 2020, e o Wengrow, arqueólogo que tem uma erudição muito grande, mostram para nós que essas aparentes contradições não são apenas características da Amazônia. Uma das perguntas que os dois tentam responder — e que é a grande questão da arqueologia mundial — é a razão de o Estado e a agricultura terem aparecido em alguns lugares e em outros, não. Talvez esteja na hora de trabalhar com a premissa de que a abundância, e não a escassez, é o ponto de partida para uma reflexão sobre a história antiga da Amazônia. O David Wengrow deu uma entrevista recentemente [em agosto deste ano] para Folha de S.Paulo dizendo que uma das arqueologias mais interessantes feitas hoje no mundo é a arqueologia da Amazônia. De fato, eu acho que a gente está vivendo um momento muito importante na pesquisa amazônica, com uma produção intelectual feita por uma geração de arqueólogos e arqueólogas mais jovens que são brilhantes. Essa produção está tendo impacto e já começa a ter maior influência, indo além dos limites da arqueologia brasileira. O próprio livro do Graeber e do Wengrow traz referências a pesquisas feitas aqui na Amazônia, o que é algo muito positivo, já que, no Brasil, a arqueologia sempre teve um papel muito marginal e periférico no quadro das ciências sociais.
Qual é o papel político da arqueologia numa época marcada por tantas crises, em especial a crise climática?
Eu penso que nós, arqueólogos e arqueólogas, por termos essa perspectiva histórica de larguíssimo prazo, uma perspectiva histórica milenar, estamos muito bem posicionados para participar dessa conversa sobre crise climática. Volto para sua primeira questão: a arqueologia não é apenas sobre o passado, ela é sobre o presente e também sobre o futuro. No caso da arqueologia amazônica, sua importância política é, sobretudo, mostrar que existiram e existem muitas outras maneiras de se viver nos trópicos.
Você defende que um notável amadurecimento acadêmico pôde ser observado nos últimos anos na arqueologia, graças, em parte, ao maior engajamento de arqueólogas e arqueólogos sul-americanos na condução de pesquisas, assim como à formação de novos cursos de graduação e pós-graduação e às políticas de ação afirmativa, que permitiram o acesso à universidade de estudantes indígenas, quilombolas e ribeirinhos. Como se dão na prática essas relações entre política e produção científica?
A arqueologia é uma ciência surgida no âmbito do neocolonialismo europeu, embora o fenômeno do colecionismo seja anterior a esse processo. Em qualquer grande museu da Europa nós iremos ver coleções arqueológicas vindas de vários lugares do mundo. A relação com o colonialismo é inseparável da própria história da arqueologia. Mas o fato de a arqueologia ter essa ligação umbilical com o colonialismo não quer dizer que ela esteja condenada a repetir essa prática. O que está acontecendo hoje no Brasil é um fenômeno muito interessante. Primeiro, a gente tem políticas públicas que foram implementadas alguns anos atrás, e que eu espero que sejam retomadas agora com mais força ainda, que permitiram o acesso à universidade de alunas e alunos de coletivos que eram marginalizados. Algumas dessas alunas e alunos estão estudando arqueologia e trazendo uma experiência de vida bastante diferente, que está ligada a uma convivência muito grande com o que eu vou chamar aqui de “patrimônio arqueológico”. Eu costumo dizer que na Amazônia o difícil não é achar um sítio arqueológico, mas saber o que fazer com ele. É muito comum que alguém que vive no interior da Amazônia viva literalmente em cima de um sítio arqueológico. Isso é um ponto. Outro ponto é que, a meu ver, é praticamente inevitável que qualquer arqueólogo ou arqueóloga que trabalha hoje na Amazônia tenha uma posição crítica. Nós perdemos 20% da floresta amazônica nos últimos 40 anos. Isso é uma tragédia! Se a arqueologia estiver correta, a história antiga da Amazônia é uma história de produção de diversidade cultural e biológica. Mas o que a gente vê nos últimos anos é uma destruição completa, que tem gerado muito conflito e muita violência e pouca riqueza para quem vive na Amazônia, e também para o Brasil. Esse engajamento nos força a fazer um tipo de pesquisa que não é só estudar um objeto, ir para o laboratório, fazer coletas e publicar nossos trabalhos. A gente precisa de fato construir um diálogo com os moradores desses locais. Eles veem uma importância grande no trabalho da arqueologia; percebem que a arqueologia é uma ferramenta importante para demonstrar a relação que eles têm com o próprio território. Eu não quero soar pretensioso, mas isso cria uma ciência que tem uma qualidade e um senso de justiça muito grandes, uma ciência mais compatível com o contexto de um país periférico como o nosso, que está lutando o tempo inteiro para manter um padrão mínimo de civilidade e garantir a manutenção das conquistas sociais que nós temos conseguido duramente ao longo dos tempos.