Neste ano em que Frantz Fanon (1925-1961) completaria 95 anos, o projeto de reedição e publicação de inéditos de sua obra no Brasil é animador. O martinicano, que atuou como psiquiatra, intelectual e teve forte envolvimento na Frente de Libertação Nacional da Argélia, deixou um legado político e teórico voltado aos movimentos anticoloniais e ao terceiro-mundismo revolucionário. Em sua obra, elaborou uma crítica ao colonialismo e se debruçou sobre a produção de sofrimento psíquico em contextos de dominação colonial.
Pensado à luz de nosso tempo, o pensamento fanoniano fornece importantes ferramentas de análise para as formas assumidas por sistemas de dominação — como a experiência sistemática do racismo no Brasil — e aponta para a necessidade de pensarmos relações entre antirracismo e saúde pública, sobretudo em um país como o Brasil, que, na pandemia e mesmo antes dela, elabora estruturas e dispositivos necropolíticos (incluso o sistema de saúde) de forma racializada.
Em tempo, a Ubu Editora publicou em maio o volume Alienação e liberdade, uma reunião dos escritos psiquiátricos de Fanon até então inéditos em português, e está com nova edição do Pele negra, máscaras brancas no prelo. Este livro, originalmente lançado em 1952, sintetiza bem o projeto político fanoniano a partir da elaboração de uma crítica à alienação psíquica causada pelo racismo em suas formas de operação. Ambos têm tradução de Sebastião Nascimento. Também a editora Boitempo lançará a terceira parte da coletânea Écrits sur l'alienation et la liberté, que reúne textos de Fanon até então inéditos em português.
Nessa entrevista com Marcos Queiroz (foto), professor do Instituto Brasiliense de Direito Público e doutorando em Direito pela UnB (com período sanduíche na UNAL/COL), discutimos nuances da obra de Fanon a partir da idealização de um projeto de intervenção concreta em nosso presente, interpelando racismo, saúde pública e determinadas formas de produção do sofrimento psicossocial assumidas em nosso tempo.
Em Pele negra, máscaras brancas (no prelo pela Ubu), Fanon esboça sua orientação pelo materialismo histórico, no sentido de que considera que uma revolução não se faz no bojo cultural, mas a partir da transformação das condições materiais a partir das quais a cultura se torna possível. Dados os anacronismos entre as realidades sócio-históricas entre a Martinica do século passado e o Brasil de hoje, como podemos atualizar esse pensamento indispensável como ferramenta antirracista para a nossa realidade brasileira?
Nas últimas páginas de Pele negra, máscaras brancas, Fanon escreve: “De modo algum devo me empenhar em ressuscitar uma civilização negra injustamente ignorada. Não sou homem de passados. Não quero cantar o passado às custas do meu presente e do meu devir. O indochinês não se revoltou porque descobriu uma cultura própria, mas ‘simplesmente’ porque, sob diversos aspectos, não lhe era mais possível respirar”. Nota-se que o martinicano é direto (será ainda mais direto nos seus escritos posteriores): a restauração da comunicação e a desalienação devem ocorrer por meio da recusa em aceitar a atualidade como definitiva. O passado não deve ser contado às custas do presente e do futuro. A história não define o sentido do nosso destino, mas é a invenção na existência e o processo de recriar continuamente que fazem parte do verdadeiro salto — de retomada de si pelo sujeito. O ciclo da liberdade é introduzido com a superação do dado histórico e a quebra das reparações retroativas. Comunicação no presente significa também desalienação do passado, em um gesto de sensibilizar o outro sensibilizando-me, de sentir o outro revelando-me outro.
O desfecho arrepiante de Pele negra, máscaras brancas é síntese da radicalidade por trás do programa político fanoniano, em que se alinham como elementos interdependentes o enfrentamento da alienação psíquica e a luta pela reorganização total da sociedade. No seu gesto, cura e revolução, desalienação e liberdade, despatologização e inovação social são lados da mesma moeda. Diante dessas considerações, Fanon nos ajuda a pensar elementos táticos e estratégicos da luta negra e antirracista no Brasil contemporâneo. Do ponto de vista tático, significa retomar o debate e a agenda histórica do movimento negro brasileiro, que nunca pensou e articulou-se politicamente em torno da ideia de identidade (incorporada de maneira colonial por parte da academia branca e atores institucionalizados no país), mas sim dentro do marco de refundação da sociedade nacional. Neste aspecto, trata-se da rejeição da lógica insular, ensimesmada, autorreferenciada e facciosa, baseada no espírito de grupo, na prática das afinidades, no binarismo e no individualismo. No seu lugar, impõe-se a construção do sujeito político negro abrangente e generoso, com consciência do seu lugar em um país como o Brasil, de maioria negra e território onde mais desembarcaram africanos escravizados, capaz de tocar profundamente na estrutura histórica do processo nacional, na medida em que a sua luta é condição da própria possibilidade democrática brasileira. Nós, como negros brasileiros, não temos o luxo de fazer uma política para nós mesmos.
Essa consciência abrangente e generosa do sujeito político pode ser vista nas ideias de negro como povo, de Guerreiro Ramos, e amefricanidade, de Lélia González: ou seja, a africanidade e a negritude, em um país como o Brasil, esparramam-se para além do contingente negro, sendo marca indelével da própria sociedade nacional. Isso nunca significou a relativização do racismo existente, mas a elaboração de outras chaves analíticas e, consequentemente, de outra estratégia política. E aqui o encontro de Fanon com essas elaborações afro-brasileiras nos ajuda a pensar a reorganização social de fundo. Primeiro, essa estratégia deve combater o colonialismo mental e substituir o espelho branco pelo espelho negríndio e popular como pressuposto de uma política que parta do reconhecimento de nós mesmos. Matar a síndrome do colonizado — o ideal de ego branco — é o passo número um.
Mas essa estratégia sabe que a batalha subjetiva só é possível se conectada a reorganização da própria sociedade. Como afirmado anteriormente, matar o Eu colonial é saber que essa nova economia política já se expressa historicamente e cotidianamente no Brasil — o escravizado em fuga; os quilombos; os terreiros; as inúmeras comerciantes de ruas, lavadeiras, quitandeiras, aguadeiras, carregadoras, que com seus negócios permitiam e permitem projetos de liberdade; os bailes de toda ordem; as inesgotáveis e efervescentes economia do conhecimento e produção cultural periféricas; o larguíssimo campesinato negro; a inventividade vivida das ruas —, o que falta é a sua articulação em um projeto de soberania. Essa é a tarefa do sujeito político negro e da luta antirracista hoje. Como Fanon atesta: sair da negação para a afirmação como condição de transcendência.
A publicação de Alienação e liberdade nos dá acesso a um âmbito do pensamento de Fanon que aponta a relação de dois espectros que para ele se atravessavam intimamente: o antirracismo e a saúde pública. Pode comentar sobre a importância de entendermos esse atravessamento para a compreensão do pensamento de Fanon?
Acredito que a relação entre antirracismo e saúde pública no pensamento de Fanon pode ser perquirida na própria trajetória de vida do intelectual. Como coloca Albert Memmi [escritor e ensaísta, autor de Portrait du colonisé, portrait du colonisateur], desde a infância na Martinica os efeitos do colonialismo e do racismo marcaram a experiência de Fanon. Eventos posteriores, como a participação na Segunda Guerra Mundial no Marrocos e, posteriormente, a vida na França, ensejaram disrupções críticas na sua percepção do lugar do negro — e dos demais colonizados — no mundo. Essas experiências irão atravessar os seus estudos em psicanálise durante sua estadia em Lyon, que terá como grande fruto o clássico Pele negra, máscaras brancas, publicado em 1952. No campo da psicanálise, essa obra é uma ruptura em diversos aspectos, como, por exemplo, a negação da matriz excessivamente fisiológica (dominante naquele momento) e o deslocamento na compreensão dos traumas, patologias e curas para o contexto social, tendo como grande pano de fundo o empreendimento colonial e seu respectivo processo de desumanização.
Na obra estão condensadas as bases teóricas para se entender o processo de epidermização dos lugares e posições sociais, ou seja, como a “raça” enclausura o colonizado no próprio corpo, enquadrado pelas divisões raciais que fixam o sujeito e o representam para o mundo. A raça, herança permanente do colonialismo, gera uma fratura no mundo que o bifurca em zonas do ser e zonas do não ser, entre humanos e inumanos, sem possibilidade de reconhecimento mútuo. Além de apontar essas bases radicalmente materiais do sofrimento psíquico e da alienação de si, o livro articula importantes contribuições para o campo da saúde, como: a diluição da separação entre sujeito e objeto (entre mente e corpo), tão cara à ciência moderna; e a suspensão da exterioridade no método, em que a própria experiência vivida do colonizado (apreendida por diálogos cotidianos, poemas, romances, memórias, narrativas pessoais, crítica de peças publicitárias, interpretações de jornais, anedotas e pelo próprio relato do subalterno) ganha centralidade na produção de conhecimento. Ou seja, a epistemologia fanoniana, no âmbito da saúde pública, exige uma abordagem em que o próprio método de acesso ao sofrimento psíquico seja capaz de restituir a negros e negras o local de humanidade no fazer científico — uma abordagem que, em si, desmantele a herança colonial na produção da verdade sobre si, sobre o outro e sobre o mundo.
Essa conexão entre antirracismo e saúde pública ganha uma dimensão ainda mais emancipatória na “segunda fase” de Fanon, a qual tem como grande expressão a obra póstuma Os condenados da Terra, publicado em 1963. Após terminar os estudos na França, em 1953, Fanon muda-se para Blida, na Argélia, então colônia francesa, onde assume a direção do hospital psiquiátrico da cidade. A partir desse contato ainda mais direto com a realidade colonial, o martinicano compreende profundamente o impacto do colonialismo na estrutura psíquica humana, identifica-se por inteiro com o sofrimento e a luta do povo árabe e rompe definitivamente com a França (talvez com o mundo ocidental em si). No seu trabalho, é interpelado pelos efeitos da tortura física sobre a mente dos argelinos capturados, pelas psicopatologias causadas pelas pressões da guerra em colonos e colonizados e por um conflito que deixou cerca de um milhão de africanos mortos. Mas Fanon é tocado, sobretudo, pela experiência de resistência dos argelinos. Dela decorre talvez o principal eixo teórico de Condenados, que é a compreensão da violência como duplo: base constituidora do colonialismo e prática revolucionária de libertação. Essa abordagem, oriunda do entrelaçamento profundo entre teoria, militância, clínica e experiência vivida, além de expressar concretamente as bases materiais do sofrimento psíquico (no livro, não há espaço para metáforas. No lugar, canhões, sabres, postos de vigilância, estupros, torturas, massacres), aponta também que a superação das patologias psíquicas tem como condição a própria reorganização total do mundo, a qual é impossível de ser feita a partir de projetos individuais. Nisso vinculam-se saúde pública e antirracismo em um projeto de emancipação radical e coletivo: se é o “normal” que produz o adoecimento do colonizado, a tarefa de desalienação não pode se resumir a intervenções tópicas e individualizadas — a despeito de serem extremamente importantes —, pois deve estar ancorada na ética e na prática de refundação da economia política e do político em si.
O projeto de retomada da obra de Fanon nos fornece precioso olhar no que diz respeito à produção de sofrimento psicossocial produzidas pelas formas assumidas dos sistemas de dominação. Como podemos pensar algo no sentido de um modelo de universalidade frente à crise global de representações políticas e do assalto neoliberal nessa fase de complexificação da economia financeira?
Como [o filósofo Achille] Mbembe aponta, é interessante pensar a obra de Fanon em termos de universalidade, ou seja, apesar das mediações e diferenciações espaciais e temporais, as reflexões do martinicano gozam de um status de verdade enquanto perdurarem os dispositivos de dominação colonial, entre eles o racismo, e as respectivas formas de insurgência descolonizadora. Ou seja, a universalidade fanoniana, grosso modo, está na sua crítica ao colonialismo e na elaboração de um contraprojeto de humanidade. Essa faca de dois gumes nos permite arrastar Fanon para entender a sociedade contemporânea e rastrear mecanismos de sua superação.
Do ponto de vista da crítica, a análise do sistema capitalista empreendida por Fanon demonstra como a “sofisticação” econômica (hoje vista nos rentismos de toda ordem, na financeirização, nas vanguardas tecnológicas e do conhecimento e no suposto desacoplamento do binômio trabalho-produção da geração do lucro) depende, na outra ponta, de processos de avassalamento de povos e territórios, ou seja, da permanência da acumulação primitiva e do aviltamento da mão de obra. O pensamento fanoniano não só traz a brutalidade praticada pelo capitalismo nas periferias do mundo para o centro da sua teoria política, como aponta que essa chaga constitutiva na engenharia do capital funda incessantemente a “raça”. Esse átomo sistêmico, que tem como efeito devastador a divisão radical do mundo em zonas do ser e do não ser, é elemento útil de uma estrutura econômica que externaliza suas desvantagens sociais (a morte, a destruição ambiental, a criação de condições de vida indignas, a erosão da cooperação e do tecido social, o aniquilamento cultural), em geral, para territórios e corpos de sujeitos não-brancos. Por outro lado, como também retoma Mbembe, Fanon faz parte dos intelectuais negros que profetizaram a universalização dessas condições periféricas para o restante do mundo, invadindo os bolsões “democráticos” e “liberais” das sociedades ocidentais. A “crise da democracia” e o avanço da extrema direita contemporâneas nada mais são que o colonialismo levado à escala global, ou o seu ricochete sobre os seus antigos beneficiários.
Por outro lado, o “modelo de universalidade” fanoniano também aparece na afirmação de um contraprojeto. Se hoje o capital impõe a generalização da indiferença e o reino do individualismo como condições de sobrevivência, numa espécie de mundialização da lógica filibusteira, da desconfiança e do todos contra todos, ausente de qualquer mediação e solidariedade, característica dos territórios sob domínio colonial, a contra-universalidade de Fanon se afirma no engajamento em processos coletivos e no resgate da dignidade que há na cooperação econômica, política e social. Esse projeto nega o indivíduo neoliberal em duas medidas. Primeiro, atesta que a minha afirmação como sujeito só faz sentido quando o meu crescimento significa o crescimento dos demais e o melhoramento da minha comunidade. Segundo, rejeita as teses de fim da história e de redução do sujeito à razão instrumental do lucro, pois concebe que não há nada mais humano que a luta por transcender o seu contexto histórico na busca de valores sublimes — a rejeição do script social e dos fatalismos na luta por liberdade e pela elevação individual e coletiva. A reivindicação desse outro estatuto da humanidade e dos seus desejos permite não só a reversão da fetichização da vida — entendida como o processo de representação da produção social desatrelada dos fatores reais de organização da estrutura econômica —, mas também a instauração de uma sociedade em que a materialidade viva e criadora da práxis humana, atravessada pelo resgate da comunicação, do reconhecimento e da cooperação, seja o centro definidor da economia política e das suas instituições.
De que forma é possível pensar e atualizar o amplo espectro da violência na obra de Fanon — salvos os anacronismos com o nosso contemporâneo — em algo como um plano de intervenção objetiva contra a experiência sistemática do racismo no Brasil atual — dados os sucessivos casos de violência policial contra corpos pretos e mesmo a tentativa de normalização da morte desses corpos no atual contexto de pandemia?
É interessante pensar a universalidade que paira sobre a obra de Fanon. Tal universalidade, por exemplo, já pode ser percebida logo nas primeiras palavras do capítulo um de Pele negra, máscaras brancas, quando o martinicano, ao tratar da divisão racial do mundo (branco e negro; colonizador e colonizado), afirma que “esta cissiparidade é uma consequência da aventura colonial”. O colonialismo, portanto, não só criou estruturas e práticas materiais de dominação, criou também a linguagem, aquilo que permite e é pressuposto de qualquer mediação com o real. Criando a linguagem, dotou o mundo de sentidos. Assim, por mais que Fanon, em seus textos, esteja lidando com experiências muito concretas — como a vida do imigrante negro caribenho em uma metrópole europeia ou a experiência da guerra revolucionária na África —, seus apontamentos e estatutos podem ser utilizados para pensar distintos contextos, como o Brasil contemporâneo, os quais guardam um pano de fundo compartilhado. Essa absorção de Fanon, inclusive, está de acordo com o que diferentes intelectuais, a exemplo de Paul Gilroy, Stuart Hall e Lélia González, apontam: o caráter universal, ainda que diferenciado, da “raça”, átomo da engrenagem colonial.
Diante desse quadro e pensando especificamente em um plano de intervenção objetiva para o Brasil contemporâneo, mediado pelo diálogo com críticas produzidas na nossa própria experiência, acredito que a obra de Fanon pode ser importante em três aspectos: arte e cura, programa político e pragmática radical. Primeiramente, essa intervenção deve ser capaz de incorporar a articulação entre arte e cura, entre as expressividades e a desalienação. Como argumenta Mbembe em A farmácia de Fanon, a imaginação da luta política produz cultura, sendo um imenso trabalho sobre objetos, formas e linguagens. Cultura que, por sua vez, reestrutura a percepção dos sujeitos sobre si ao mesmo tempo que retira o caráter maldito sobre o mundo. Velhas sedimentações coloniais são estilhaçadas e a história é passível de ser revertida: o confronto consigo mesmo e, consequentemente, com o mundo se torna inevitável. É a origem do futuro.
Bom, e o que isso tem a ver com o Brasil? É importante levar em conta que as nossas expressividades populares, de base marcadamente negra e indígena, cotidianizadas nas ruas, barracões, fundos de quintal, esquinas, encruzilhadas, terreiros e terrões, são extremamente marcadas por essa reapropriação de si a que Fanon e Mbembe se referem. Ou seja: a resposta para os nossos problemas brasileiros está em nós mesmos. O necessário é uma prática política emancipatória que dê conta disso não como algo periférico, mas como absolutamente constitutivo. Especificamente em relação ao extremo da alienação (a desumanização assassina, o descarte de vidas e a indiferenciação total em relação ao seu semelhante), essas expressividades negríndias ressignificam constantemente o lugar da morte, trazendo o direito ao luto para o centro da política. Se a normalização do sangue derramado é o nosso devir nacional, o ato de velar é o primeiro passo de negação do destino imposto. O luto interrompe a transformação da morte em mercadoria, tão comum em tempos de pandemia, ou a sua conversão em números, como se dá nos reportes do genocídio. O luto restitui, na morte, a condição de sujeito àquele que se foi. Assim, ele nega que o sangue do corpo caído seja tomado como sacrifício no ritual de reprodução da sociedade vigente.
Segundo: se Fanon aponta a necessidade de reorganização da economia política, um plano de intervenção objetiva sobre a realidade brasileira deve tomar como central programas políticos aqui elaborados ao longo da história. No âmbito do pensamento negro, podemos pensar, por exemplo, na tríade quilombola: o quilombo de Beatriz Nascimento, modelo e horizonte de espaço auto-organizado a partir de princípios africanos e diaspóricos; a quilombagem de Clóvis Moura, práxis radical na qual luta por liberdade e organização política se fundem; e o quilombismo de Abdias Nascimento, que delineia a formação de uma nova institucionalidade capaz de enfrentar radicalmente o racismo e fundar uma democracia de alta intensidade. Tais projetos não só sugerem as bases de um outro modelo social, como colocam em primeiro plano aspectos muitas vezes secundarizados na agenda política antirracista contemporânea — a exemplo do controle e da gestão dos territórios, sejam rurais ou urbanos, e da reelaboração das relações entre trabalho e produção.
Por fim, o pensamento fanoniano é um pensamento “antidestino” não só por vincular a prática radical à construção de um outro futuro, mas também por impelir uma pragmática radical, na qual as alternativas societais devem ser encarnadas nas atitudes e propostas do presente. Ou seja, o futuro possível deve se tornar acessível e visível em medidas concretas, que intercedam nos problemas das pessoas hoje. Diante da crise em que vivemos, Fanon nos ajuda a entender mais do que nunca como essas propostas devem incorporar, cada uma à sua medida, fragmentos revolucionários: à escassez de alimentos e à destruição ambiental oriunda do latifúndio, reforma agrária e retomada de infraestrutura, terras e aparelhos estratégicos à soberania nacional; ao genocídio das forças de repressão, desinvestimento nas polícias e construção da segurança pública baseada em modelos de autogestão, como comunidades negras e indígenas na América Latina já o fazem; à carência de direitos e dignidade, a defesa intransigente da universalidade da saúde e da educação, já previstos constitucionalmente; ao desemprego e ao desamparo, a construção de um modelo econômico que priorize aqueles que realmente movimentam o país, os trabalhadores, capaz de dinamizar a sociedade aliando nossa sagacidade e engenhosidade com a incorporação democrática das novas lógicas de conhecimento e tecnologia na produção; à ausência de um outro projeto de país, um no qual a vitalidade do nosso povo — que, mesmo em condições precárias, se reinventa de maneira inesperada e criativa —, sirva de inspiração para uma organização social na qual as melhores das nossas capacidades sejam canalizadas para a elevação da vida de todos e todas.
Portanto, Fanon nos ajuda a pensar um plano de intervenção objetiva para o Brasil sobretudo por nos lembrar que já temos o seu esboço formulado: nas formas de cura da mente e do corpo oriundas das expressividades negríndias; nos programas políticos insurgentes ou em soluções concretas inspiradas nos próprios dramas e lutas da população brasileira.
A idealização de uma “clínica revolucionária” em Fanon é algo que nos provoca a pensar em nosso precarizado sistema de saúde. Em uma sociedade como a brasileira, que mantém suas estruturas sociais e dispositivos necropolíticos de forma racializada (e aqui podemos incluir o sistema de saúde), como podemos idealizar uma nova clínica — dada a larga dimensão social que podemos entender por uma clínica pública — como projeto de reformulação do nosso sistema de saúde?
Acredito que a melhor forma de responder à pergunta é colocar Fanon em diálogo com a nossa própria experiência. Aqui sugiro esse movimento em duas escalas: com o próprio marco institucional existente, o Sistema Único de Saúde; e com intelectuais que pensaram e pensam as relações entre saúde mental e antirracismo no Brasil. Em tempos de erosão do tecido social e do império da destruição, o primeiro aspecto é enfatizar a defesa do SUS e do programa político que o encampou e o inspira. Não há que se falar em clínica pública e em uma nova clínica se não há o próprio arcabouço institucional, material e jurídico do Sistema Único. A sua defesa, manutenção e universalização são pressupostos. No mesmo sentido, é importante dimensionar a radicalidade da ideia de saúde pública em um país como o Brasil. Sendo público, o SUS afirma a saúde como um direito, atesta que ela não pode ser subsumível à lógica do mercado e que deve ser norteada pelo princípio democrático e pelo igual acesso a todos os cidadãos. São as bases de um paradigma. Paradigma que, se realizado na sua plenitude, poderia servir de vanguarda para o resto do mundo que vê a atual e as futuras crises sanitárias colocarem em xeque o modelo mercantilizado de saúde.
O SUS é a materialidade existente e potencial e é nele que podemos projetar o que a pergunta chama de uma nova clínica. Para tanto, é produtivo o diálogo de Fanon com nomes brasileiros que pensaram as relações entre sofrimento psíquico e racismo, a exemplo das imprescindíveis Neusa Santos Souza e Isildinha Baptista Nogueira. Desse diálogo, desdobram-se três aspectos para se reformular os processos de cura no Brasil: I) Os trabalhos de Neusa e Isildinha demonstram como os apontamentos e os padrões de subjetivação e alienação descritos por Fanon são extensíveis à sociedade brasileira. Conceitos como o ideal de ego branco, de Neusa, e mito da brancura, de Isildinha, são importantes para compreender a fratura do Eu imposta pelo racismo, no mesmo sentido elaborado pelo martinicano em suas obras. Neste sentido, importa compreender como a psique negra é elaborada diante de um espelho distorcido, em que o lugar de realização e de desejo se assemelha ao branco, ou seja, àquilo que é inalcançável ao negro. Quanto mais ele busca se aproximar desse ideal, mais longe ele está de si. Compreender a dimensão desse tipo de alienação também impele captar a importância profunda da variável racial na psicanálise, em que padrões de sofrimento devem ser entendidos a partir do impacto do racismo, o qual atravessa e transcende lugares de classe, gênero e região. II) O diálogo de Fanon com as contribuições brasileiras também aponta que a clínica pública deve ser radicalmente compromissada com o desencarceramento dos ambientes de tratamento e cura. A arte negra brasileira, a exemplo de Lima Barreto, Arthur Bispo do Rosário e os grupos de rap, são contundentes na crítica ao continuum que há entre ambiente psiquiátricos e as demais instituições totais, como o cárcere. Mais do que isso, iluminam como a própria espacialização urbana reproduz a lógica do confinamento e do esquadrinhamento, aproximando as quebradas das prisões, como diz Renato de Almeida Freitas Jr. Neste sentido, colocar Fanon em contato com essa constelação crítica nacional é almejar uma ideia de clínica não só desencarcerada, mas que na sua proposta abolicionista dilua as grades e "fronteiras nos jardins da razão", para citar Chico Science. III) Por fim, essa nova clínica pública deve ter como central métodos, técnicas e abordagens de nomeação da raça. No nosso contexto, isso se torna particularmente importante por dois sentidos. Primeiro: o racismo no país se sustenta, especial e paradoxalmente, sob o mito nacional de ausência de racismo entre brasileiros. A democracia racial é a variante ideológica particular que blinda o racismo em alguns países latino-americanos e, por isso, está na base do sofrimento dos negros nesses lugares. Processos de cura no Brasil devem estar dispostos e capacitados a enfrentar esse discurso. Segundo: Fanon, assim como Neusa e Isildinha, apontam que as neuroses raciais não afligem somente os negros, mas também os brancos. Neste sentido, a reorientação da clínica, a partir de um viés antirracista, deve ser capaz de pensar como a divisão racial do mundo desaliena e afeta a subjetivação desses sujeitos, ainda que em distintas dimensões. Ou seja: os temas “raça” e racismo não devem ser levantados somente com o “paciente” negro. Mais: brancura e branquitude passam a ser ferramentas analíticas centrais na compreensão do sofrimento psíquico e dos processos de cura.
Tudo isso reorienta um programa de saúde pública em que o enfrentamento do racismo seja feito com o envolvimento de toda sociedade e de maneira relacional, negando o viés de que é um “problema do negro” e ele que se vire para dar conta.