Sob quais parâmetros, sob quais reveses, podemos pensar o narrador no mundo de hoje? Este mundo, em que a História pulou da torre, rompeu a cúpula das capitanias hereditárias, desterrou os barões assinalados, olhou bem ao redor, e foi lavar acúmulos de roupa suja escondida nas camadas do subsolo? Este mundo mesmo, em que todos formulamos nossa própria dose de autoficção e metanarrativa em status e stories de redes virtuais que se propõe comunidade, arregimentando novos sentidos para o verbo compartilhar? Qual o lugar da ficção no mundo atual? No qual fake news derrubam, aprisionam e elegem chefes de Estado, e os discursos dos chefes das instituições recorrem cada vez mais a fábulas e vocabulários controlados, enquanto a ficção scricta, a ficção científica, os romances, são cada vez mais requeridos e necessários para o entendimento do tempo-espaço em que nos movemos? Quais histórias hoje nos instigam, nos explicam, quais nos conectam, nos desorganizam? Quais nos removem do lugar e nos permitem experiências de outros centros, outras sensibilidades? Qual é o lugar do romance em um mundo em que, acima de (quase) tudo, disputamos narrativas, significados?
No clássico ensaio O narrador, Walter Benjamin pensou as condições dissolventes da narrativa como possibilidade de acesso e contato em um mundo capitalista, que se tecnicizava e cada vez mais focava no indivíduo em detrimento da comunidade. O jornal e o romance foram, para ele, os eventos responsáveis pela queda da “capacidade de intercambiar experiências”, promovida no momento de repartir narrativas. O declínio da roda – isto é, a perda da possibilidade de partilhar a voz e a escuta, tornada mais rara no mundo das máquinas e suas velocidades, se aprofunda, para Benjamin, também como substrato do trauma da guerra, que produziu silêncio sem palavra, calando fundo. O jornal e o romance – pela emergência veloz da informação rasurando tempo e espaço e pela condição isolada da leitura, direcionada ao mundo fechado do sujeito burguês – constituíram, segundo o filósofo, o desequilíbrio na capacidade humana de contar, impedindo a proposição de uma comunidade entre vida e discurso. [nota 1]
Foi preciso que a herança de Vô Vicêncio se realizasse, se cumprisse na irmã para que ele entendesse tudo. (...) Compreendera que sua vida, um grão de areia lá do fundo do rio, só tomaria corpo, só engrandeceria, se se tornasse matéria argamassa de outras vidas. Descobrira também que não bastava saber ler e assinar o nome. Da leitura era preciso tirar outra sabedoria. Era preciso autorizar o texto da própria vida, assim como era preciso ajudar a construir a história dos seus. E que era preciso continuar decifrando nos vestígios do tempo os sentidos de tudo que ficara para trás. E perceber que, por baixo da assinatura do próprio punho, outras letras e marcas havia. A vida era um tempo misturado do antes-agora-e-do-depois-ainda. A vida era a mistura de todos e de tudo. Dos que foram, dos que estavam sendo e dos que viriam a ser. (Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio).
A possibilidade dessa comunidade, decaída, para Benjamin, com a assunção do romance, se alça, pelo oposto, a prenúncio, no olhar mais recente da romancista Toni Morrison, quando ela diz que “o romance é uma forma necessária para o povo negro”.[nota 2] Entre Benjamin e Morrison, um Oceano Atlântico, no mínimo. Mas em ambos há noções de narrativa como ponte, caminho e cognição, como linguagem que sustenta nossa continuidade e reconhecimento enquanto seres sociais. Para Toni Morrison, o poder fundamental de criar/contar/armazenar narrativas pode encontrar regalo justamente na plataforma romance.
Antigamente isto aqui não era assim. Quero dizer, era e não era. O engenho está no mesmo lugar e trabalha como antes. As árvores são as mesmas — eucaliptos subindo a ladeira que vai até a casa do administrador. Na refinação é aquele barulho de sempre: maquinaria rodando, correame dando chicotadas no ar e engrenagens se entrosando. O mesmo caminho sobe torcido, corcunda de nascença, varando a serra desde os começos, embaixo, na fazenda, volteia o cabeço e vai dar, no outro lado, em terras de Maria da Fé. E os burros descem, como sempre desceram por ele, carregados de cana caiana e cana-rosa. Pode ser que sejam os mesmos burros. (Ruth Guimarães, Água funda)
Fértil como terra preta é o romance, pois o mundo também é feito da carne das estórias que cultivamos: narrativa implica vida, porque constitui nossa potência de significar, compõe parte resistentemente humana da nossa condição. Observem a passagem do romance Um defeito de cor em que a avó de Kehinde, ao perceber suas netas Ibejis a ponto de se perderem para sempre diante da captura colonizadora, faz o impossível para ir junto com elas, e ali no navio, na travessia de um mundo (África) em que Kehinde era pessoa para um sistema (Brasil) em que passaria a ser escravizada, a velha vodúnsi narrou tudo que podia antes de morrer, tornando o futuro (humano, não escravo) possível à menina.
Durante dois dias ela me falou sobre os voduns, os nomes que podia dizer, as histórias, a importância de cultuar e respeitar os nossos antepassados. Mas disse que eles, se não quisessem, se não tivessem quem os convidasse e colocasse casa para eles no estrangeiro, não iriam até lá. Então, mesmo que não fosse através dos voduns, disse para eu nunca me esquecer da nossa África, da nossa mãe, de Nanã, de Xangô, dos Ibêjis, de Oxum, do poder dos pássaros e das plantas, da obediência e respeito aos mais velhos, dos cultos e agradecimentos. A minha avó morreu poucas horas depois de terminar de dizer o que podia ser dito. (Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor)
Através da forma romance, é possível ver retintamente a literatura brasileira como uma arena de disputa por narrativas, especialmente notável quando abordamos o gênero levando em conta a autoria. A autoria, pensada como os atravessamentos e posicionalidades que configuram a voz que escreve, é uma ênfase que permeia os exercícios contemporâneos de reflexão sobre o literário. Como escreveu Judith Butler, “há uma vida corporal que não pode estar ausente da teorização”. É interessante pensar que no caso da literatura brasileira, o “quem escreve” compõe o literário canônico desde sempre, embora a pergunta sobre “quem escreve” só tenha passado a incomodar, a ser entendida como problema sociológico e não literário, quando o sujeito enunciador privilegiado da literatura brasileira tornou-se objeto de contestação. A representação nacional arregimentada pela voz que enuncia o romance brasileiro comparece na clássica obra Formação da literatura brasileira, de Antônio Candido, em que o fundamento do romance não está nem na “transfiguração da realidade” operada pela poesia, nem tampouco na “realidade constatada” da ciência, mas, sim, na “realidade elaborada por um processo mental que guarda intacta a sua verossimilhança externa, fecundando-a interiormente por um fermento de fantasia, que a situa além do cotidiano – em concorrência com a vida”. Para o crítico, o romance é vitorioso quando esses elementos aparecem em equilíbrio, e ele se mantém fiel “à vocação de elaborar conscientemente uma realidade humana, que extrai da observação direta, para com ela construir um sistema imaginário e mais durável”. Um sistema imaginário eurocêntrico, tendo em vista que a história do romance no Brasil também tangencia a formação da elite letrada nacional.
Movidos por um natural sentimento de solidariedade humana e pelo orgulho de sua raça, os negros se mantiveram altivos, indiferentes, revelando um destemor que não passou despercebido ao senhor da casa-grande. O coronel percebeu que não poderia insistir. Ficou petrificado, sentindo que os negros o envolveram subitamente num círculo estreito, encurralando-o. O medo dominara-o. Não tinha coragem de encarar os escravos. Furtava-se a olhá-los. A custo se mantinha de pé. Os braços cruzados sobre o peito, a cabeça baixa, o olhar comprido vagueando sobre o assoalho. A respiração lenta, pausada, quase imperceptível. (Anajá Caetano, Negra Efigênia, paixão do senhor branco)
Romances com autoria negra na literatura brasileira constituem um quadro de poucas obras, um quadro rarefeito. Em minha pesquisa de doutorado, na USP, arrisquei fazer um mapeamento preliminar para possibilitar uma visão panorâmica da cartografia da forma. Não localizei sequer uma centena de títulos, e encontrei apenas 14 autoras com romances publicados. Esse mapeamento, cabe dizer, já parte do princípio (esperança) da falha, isto é, de que existam muito mais obras e autoras do que o que está visível neste momento. Oito dessas obras compõem a roda que costura minha tese [nota 3], dedicada ao estudo de um conjunto de romances escritos por autoras negras brasileiras, em que teço um recorte temporal de 1859 a 2006, por serem estes dois anos paradigmáticos: o primeiro, porque funda o corpus, com o pioneiro Úrsula, o segundo, porque o assenta, com Um defeito de cor – destacando que, desde o livro de Maria Firmina dos Reis, no século XIX, até a publicação da obra de Ana Maria Gonçalves, apenas 11 romances de autoras negras foram lançados no país. Mas, depois do lançamento de Um defeito de cor até o outono de 2019 (isto é, no período de 13 anos) foram publicados 17, o que aponta, podemos conjecturar, um cenário futuro de caminhos mais abertos para a forma.
Eu vi a força tão grande de gotas que rasgam fendas na terra – essa que ontem tinha sido tão dura e seca – e arrancam lascas dum barco que penso em amanhã esculpir. (Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo)
Deste corpo de romances emerge uma roda insurrecta, que lança palavra contra o silêncio a que a História relegou, de um lado, pessoas negras e suas narrativas de si, e do outro, as narrativas do mundo. Uma roda composta por um corpo textual que vem secularmente disputando significados perante conteúdos que formulam e interpretam o nacional, o passado colonial e a sociedade presente exclusivamente a partir do eurocentrismo. A roda engendra outras vias de significação para pensar, por exemplo, as relações de poder e as heranças que nos configuram enquanto sociedade.
O Coronel, não havia dúvida, nascera sob o domínio de uma boa estrela, pois até essa idade não encontrava empecilhos na vida, tudo era amplo, igual ao espaço. Via todas as aspirações realizadas, às vezes ficava pensando: “consigo tudo que almejo, tenho a impressão de que a felicidade é minha madrinha e me protege com seu manto” (Carolina de Jesus, Pedaços da fome)
Textos que disputam narrativas desde o momento de formação das ficções de fundação. Disputam a narrativa de imaginação da nação e a narrativa da memória que seleciona o passado a ser lembrado, impondo-se ao arquivo pretérito que apaga o negro ou o mantém escravo. Disputa a História oficial enquanto projeção das elites dominantes, inscrevendo as temporalidades da experiência negra na narração da nação. Mas não só, evidentemente. Tece cotidianos, sumidouros, bifurcações.
E agora eu preciso inventar o sonho que vou sonhar amanhã. (...) Nema, é assim que eu faço agora, aqui, para aguentar o meio-dia. Eu saio em sonho ao meio-dia. Sabe quando foi que primeiro eu sonhei? Quando era 1969 e eu pisei em São Paulo. Lá nessa cidade eu passei a precisar inventar sonhos. Passei a precisar que o mundo se acabasse. (...) Nessa cidade de onde saio, essa cidade tão enorme de prédios e pessoas e carros e lixo passando e vida de cidade, as pessoas são jeitos perdidos. As coisas acontecem, as histórias se fazem aos milhares, mas as histórias se perdem também aos milhares, morrem onde nascem. Cada pessoa é uma história perdida. (Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo)
A TECNOLOGIA DA RODA
A roda é, antes de tudo, uma forma de leitura comparada, uma metodologia. O pressuposto da roda são as trocas, os atravessamentos daquele momento vivo. A roda é um prisma a partir do qual se pode pensar a literatura como experiência contemporânea de conexão e partilha, de comunidade. Gira nos clubes e círculos de leitura, por exemplo, que retornaram como nunca foram, populares, e alguns com declinação aparente do que se busca, como os “leia/lendo mulheres”, “leia/lendo mulheres negras”. Na roda não há hierarquia, o centro é móvel, contingente, transitório. A roda é o avesso da torre. A roda não é lúdica nem está à parte, pelo contrário, pode gerar uma inteligibilidade oxigenada para lermos nosso tempo.
A roda nos abre caminhos. De entender e se movimentar. Cada personagem, tessituras cujos sentidos dialogam com o real – e com os imaginários – que nos atravessa(m) agora. Um corpus ficcional, do qual emerge um pensamento que nos atualiza acerca do conhecimento do passado, pois a memória é um chão comum nos romances, levando-nos de volta à cena liminar da escravidão (Úrsula, de Maria Firmina dos Reis, Negra Efigênia, de Anajá Caetano, Um defeito de cor, de Ana Maria Gonçalves), à cena difusa do pós-abolição (Água funda, de Ruth Guimarães, Diário de Bitita, de Carolina de Jesus, Ponciá Vicêncio, de Conceição Evaristo), à cena fractal do contemporâneo permeado de fantasmas do pretérito (A mulher de Aleduma, de Aline França, As mulheres de Tijucopapo, de Marilene Felinto). Esses textos articulam continuidades num nexo enunciativo que abrange quase três séculos de confronto às narrativas que moldam a face da literatura brasileira sem dinamizar nela o seu princípio colonial. Isto é, afrontam a seletividade dos arquivos discursivos com os quais se tem imaginado a nação, porque impõe a essa imaginação o componente fundante que, contraditoriamente, é mantido soterrado (na literatura canônica): a experiência histórica do negro.
Susana, Efigênia, Kehinde, Bitita, Maria Vitória, Rísia, Joana, Ponciá, personagens dos romances, numa roda. Pensando cada uma dessas mulheres de papel, vou imaginando conversas: ler é um ato vivo. Susana é a mais velha da roda, sua voz pavimenta caminhos e enunciações. Ela tem memórias intensas de sua vida na África, antes dos bárbaros a capturarem para ser escravizada no Brasil. Susana narra, sob o fluxo da água saindo dos olhos, aquelas outras águas, que a atravessaram quando sob elas passou dentro de um navio negreiro. Ela narra, e leitores do século XIX escravocrata puderam escutar assim: “Vou contar-te o meu cativeiro”. A partir desse momento, um universo representativo foi instaurado na ordem discursiva.
Tinha chegado o tempo da colheita, e o milho e o inhame e o mendubim eram em abundância nas nossas roças. Era um destes dias em que a natureza parece entregar-se toda a brandos folgares, era uma manhã risonha, e bela, como o rosto de um infante, entretanto eu tinha um peso enorme no coração. Sim, eu estava triste, e não sabia a que atribuir minha tristeza. Era a primeira vez que me afligia tão incompreensível pesar. Minha filha sorriu-se para mim (...). Desgraçada de mim! Deixei-a nos braços de minha mãe e fui-me à roça colher milho. Ah! nunca mais devia eu vê-la… Ainda não tinha vencido cem braças de caminho, quando um assobio, que repercutiu nas matas, me veio orientar acerca do perigo iminente que aí me aguardava. E logo dois homens apareceram, e amarraram-me com cordas. Era uma prisioneira – era uma escrava! Foi embalde que supliquei em nome de minha filha que me restituíssem a liberdade: os bárbaros sorriam-se das minhas lágrimas, e olhavam-me sem compaixão. Julguei enlouquecer, julguei morrer, mas não me foi possível... a sorte me reservava ainda longos combates. Quando me arrancaram daqueles lugares onde tudo me ficava – pátria, esposo, mãe e filha, e liberdade! Meu Deus! O que se passou no fundo de minha alma, só vós o pudestes avaliar… Meteram-me a mim e mais trezentos companheiros de infortúnio e de cativeiro no estreito infecto porão de um navio. Trinta dias de cruéis tormentos, e de falta absoluta de tudo quanto é mais necessário à vida passamos nessa sepultura até que abordamos as praias brasileiras. Para caber a mercadoria humana no porão fomos amarrados em pé e para que não houvesse receio de revolta, acorrentados como os animais ferozes das nossas matas, que se levam para recreio dos potentados da Europa (...). (Maria Firmina dos Reis, Úrsula)
Afiando suas facas sob o peso do colonial que empareda, Efigênia é só escuta e espera – pantera no procedimento, comunicando um cenário distópico e totalmente realista, em que a escravidão termina, mas as desigualdades e hierarquias perduram. A abolição, no romance, não representa uma mudança de fato para as pessoas negras, nada indica que o 13 de maio garantirá à comunidade ex-escrava a ascensão à cidadania e igualdade; ao contrário, o romance termina sugerindo que a consciência do homem branco não seria realmente transformada com a mudança oficial de regime político: liberto da condição de senhor, mas não do lugar de poder que essa posição lhe conferia, essa consciência do senhor de escravos sobreviverá, de alguma maneira, transposta a outros homens (no pós-abolição) pela permanência da colonialidade.
– Meu filho – disse o coronel, se acercando dele – como me sinto reconfortado com a volta de mãe Benedita e Efigênia. Creio que estamos perdoados por todas as nossas faltas, por todos os nossos erros. Agora, eu creio que a fazenda do Tronco sobre a qual pesavam tantas e tantas maldições será para sempre a fazenda de Santa Isabel. Daremos liberdade plena a nossos escravos e sobre as nossas terras o trabalho será livre. Ao término de cada jornada de trabalho, depois do amanho da terra avara de seus tesouros, os nossos negros não mais terão como recompensa apenas, o bolo de fubá e o catre, ou a solitária onde purgavam suas faltas.... Paulinho olhou-o com admiração, estarrecido. Ele jamais falara assim. Súbito, como se tivesse sido possuído por forças espirituais irresistíveis, o coronel Galdino num assomo de nervos como se houvesse enlouquecido, começou a gritar: – Para fora daqui! Sois livre! Puxa! Puxa Estais livres! Eu os libertei! Ao falar assim, afrontava a todos com gestos imperiosos, como se repelisse a negrada, procurando enxotá-la do terreiro. (Anajá Caetano, Negra Efigênia, paixão do senhor branco)
Ponciá, gestando tantos elos rompidos, faz a ponte entre os tempos idos e as dores que paralisam hoje, realçando que evitar ou esquecer feridas históricas nos expõe a perigos, impedem a saúde do sujeito, da comunidade. Feridas que precisam ser fratura exposta, para depois de vistas, dar lugar à pele nova do futuro. Os círculos em torno dos quais Ponciá Vicêncio se enreda geram uma catarse que extrapola a personagem: a experiência das memórias que herdamos de nossos antepassados, articulada aos desafios do nosso próprio presente, é que pode descolonizar a vida.
De todas as pessoas, Ponciá ouviu a mesma observação. Ela era a pura parecença com Vô Vicêncio. Tanto o modo de andar, com o braço para trás e a mão fechada como se fosse cotó, como ainda as feições do velho que se faziam reconhecer no semblante jovem da moça. A neta, desde menina, era o gesto repetitivo do avô no tempo. Escutou também, por diversas vezes, a história dolorosa, que ela já sabia, da morte da avó pelas mãos do avô. Relembravam o desespero e a loucura do homem. Falavam também do ódio que o pai dela tinha por Vô Vicêncio ter matado a mãe dele. Ponciá sabia dessas histórias e de outras ainda, mas ouvia tudo como se fosse pela primeira vez. Bebia os detalhes remendando cuidadosamente o tecido roto de um passado, como alguém que precisasse recuperar a primeira veste para nunca mais se sentir desesperadamente nua. (Conceição Evaristo, Ponciá Vicêncio)
Rísia andou por nove meses à margem da BR-101, que liga São Paulo ao Recife, procurando no passado um futuro para nascer de novo, mas agora na placenta da revolução. Uma revolução interior, subjetiva, que envolve o retorno para a cena das “esculhambações” históricas que formam o sujeito no presente, e um mergulho na composição dos afetos, também eles, respondendo aos atravessamentos (de raça, gênero, classe social, geografia) que constituem a primeira pessoa da narrativa. O tempo, filtrado pela subjetividade da narradora, é um dos temas centrais da ficção. Passado e presente surgem como temporalidades amalgamadas, espirais, medi(a)das pelo sentimento, e pelos próprios fantasmas.
Eu saí de São Paulo porque houve um homem que se morreu de mim e porque lá eu morava no subúrbio enquanto todos os meus amigos estavam bem estabelecidos no Higienópolis paulista. Então, muitas vezes os contatos eram impossíveis porque eu não tinha telefone. Eu nunca era avisada da morte de alguém, por exemplo. Os contatos ficavam difíceis. O Higienópolis paulista é onde se bebem os guaranás inteiros. E o onde estão as pessoas que já leram os livros que eu já li. E é isso que me dana. (...) É essa gente que depois discutirá a goles de Coca-Cola inteira no Higienópolis paulista. (...) Quando eu chegar lá, vou contar a Nema dos mil nomes científicos e não científicos que eles arranjaram para me definir e para provar a inocência deles na minha retirada. (...) Nema, você pensa que em São Paulo há um poema que rime com Nema? Não, lá é tudo dissonância (Marilene Felinto, As mulheres de Tijucopapo).
No caminhar da roda, corajosa e aguerrida, chega Bitita, dizendo do que permanece, do que a abolição prometeu e depois ninguém sabe, ninguém viu. Mulheres negras sendo presas sem razão (ou melhor, dentro de uma (ir)racionalidade racista) e a permanência do chicote – simbólico inconteste da opressão dos senhores de escravos. Carolina Maria de Jesus é uma intérprete da modernidade brasileira, uma fonte de água revolta. Suas narrativas nos ensinam a ler a sinonímia moderno/colonial, porém, não sem antes nos confrontar: Trouxeste a chave?
Quando havia um conflito, quem ia preso era o negro. E muitas vezes o negro estava apenas olhando. Os soldados não podiam prender os brancos, então prendiam os pretos. Ter uma pele branca era um escudo, um salvo-conduto. (...) Os brancos, que eram os donos do Brasil, não defendiam os negros. Apenas sorriam achando graça de ver os negros correndo de um lado para outro. Procurando um refúgio, para não serem atingidos por uma bala. (...) Minha mãe lavava roupa por dia e ganhava cinco mil-réis. Levava-me com ela. O meu olhar ficava circulando através das vidraças olhando os patrões comer na mesa. E com inveja dos pretos que podiam trabalhar dentro das casas dos ricos. Um dia minha mãe estava lavando roupa. Os policiais prenderam-na. Fiquei nervosa. Mas não podia dizer nada. Se reclamasse o soldado me batia com um chicote de borracha. Quando o meu irmão soube que a mamãe estava presa começou a chorar. Rodávamos ao redor da cadeia chorando. À meia-noite resolveram soltá-la. Ficamos alegres. Ela nos agradeceu depois chorou. Eu pensava: “é só as pretas que vão presas.” (Carolina de Jesus, Diário de Bitita)
Sob o som dos tambores, inventando espaços no imaginário para a existência plena, eis que surge na roda Maria Vitória, lá da ilha de Aleduma, um quilombo na Terra projetado por negros vindos de um planeta imaginário. Nesse romance, o histórico é inscrito como deriva do real, antecipando linhas afrofuturistas na narrativa. A ficção, científica para alguns, surrealista para outros, projeta uma comunidade de destino transnacional, afropolita 4, que se encontra e conecta por uma mesma linguagem oral e corporal, o ijexá.
O presidente do afoxé falou em voz alta: que esta febre apareça sempre em cada um de nós e com a voz embaraçada de emoção gritou OXUM, OXUM, banhe a terra com suas águas abençoadas e que todos os cânticos em IJEXÁ traduzam nossas homenagens ao planeta IGNUM. E o Badauê cantou: “Oxum, Oxum, amenize a fúria de Ogum... Deixe Xangô, suas mulheres amar. Obá, Obá... Deixem de guerrear... (Aline França, A mulher de Aleduma).
Kehinde, filha de Oxum astuta e criativa, vem na roda mostrar os desenredos de seus caminhos atlânticos. Cruzando vários mundos no romance, sua narrativa torna prescritos múltiplos silêncios, abrindo espaço para uma rede intrincada de relações, linhas de fuga, atalhos e curvas, tornando tudo mais fundo e complexo, lembrando-nos a todo tempo a necessidade e a força do arquivo.
Quando eu disse que me chamava Kehinde, o nosso dono pareceu ficar bravo, e um dos empregados perguntou novamente, em iorubá, que nome tinham me dado no batismo. Eu repeti que meu nome era Kehinde e não consegui entender o que diziam entre eles, enquanto o empregado procurava algum registro na lista dos que tinham chegado no dia anterior. O que sabia iorubá disse para eu falar o meu nome direito porque não havia nenhuma Kehinde, e eu não poderia ter sido batizada com este nome africano, devia ter um outro, um nome cristão. Foi só então que me lembrei da fuga do navio antes da chegada do padre, quando eu deveria ter sido batizada, mas não quis que soubessem dessa história. A Tanisha tinha me contado o nome dado a ela, Luísa, e foi esse que adotei. Para os brancos fiquei sendo Luísa, Luísa Gama, mas sempre me considerei Kehinde. O nome que a minha mãe e a minha avó me deram e que era reconhecido pelos voduns, por Nanã, por Xangô, por Oxum, pelos Ibêjis e principalmente pela Taiwo. Mesmo quando adotei o nome de Luísa por ser conveniente, era como Kehinde que eu me apresentava ao sagrado e ao secreto. (Ana Maria Gonçalves, Um defeito de cor)
Por meio do seu intenso e longo fluxo narrativo, o romance Um defeito de cor possibilita uma experiência de pensamento e acesso a um arquivo, um mundo de conexões, representações e imagens sobre a escravidão; sobre a modernidade vista da diáspora; sobre a colônia; as relações sociais (entre homens e mulheres, negros e brancos, adultos e crianças, brasileiros e estrangeiros, livres, libertos e escravizados). O romance constrói uma narrativa para o cotidiano de uma mulher negra em suas relações, transições, negociações, buscas, frustrações, alegrias, amores, enfim, enquanto sujeito que vive e resiste à morte (do corpo, da memória e da agência). Escrava, alforriada, fugida e livre, Kehinde experimentou todos os estados em que no passado se categorizou a vida da pessoa negra, e em todo eles produziu saídas e vias de existência. Nesse romance, a narrativa se potencializa como cognição, cuja cognoscibilidade produz, no ato da leitura, um conhecimento do passado que reverbera no nosso presente.
O corpo de romances de autoras negras no Brasil constitui a/constitui-se na literatura brasileira moderna e contemporânea, embora questione seus pressupostos formativos ao inscrever em seu território uma gama de problemáticas, em razão da potência que possui em acender fagulhas nos falsos consensos que historicamente foram sendo inscritos no arquivo discursivo nacional. Por exemplo, o de que somos um povo harmônico, sem conflito racial nem racismo.
Pelos seus conteúdos, o pensamento produzido nessa roda de romances retoma o passado e nos atualiza sobre o contemporâneo, ao elaborar de forma criativa a concepção de que no Brasil há uma lógica de poder atuante que sustenta ininterruptamente a colonialidade. Mas, se uma das ferramentas mais importantes da manutenção da ordem é o controle sobre o esquecimento de determinadas fendas, a sua enunciação na narrativa rompe o silêncio, propõe linhas de fuga, constrói a ruptura. Retém-se da leitura desses romances que a roda é substantivo espiral, produz um pensamento sobre o Tempo, sobre o que do passado permanece constituindo nosso presente, rareando nosso futuro.
Esses romances, visíveis e em circulação, interrogam o Brasil pela chave da espiral-plantation [nota 5], seu paradigma mais durável. Por isso, convergem tanto com o contemporâneo, nas dinâmicas notáveis de fortalecimento continuado dos mesmos círculos no poder, na repetição das mesmas engrenagens de opressão, no retorno a certo modus operandi já conhecido, nos retrocessos, em tudo que no nosso momento aquilata forças de caráter regressivo. Romance e sociedade são uma chave clássica de leitura nos estudos literários brasileiros, mas quantos trabalhos aproximam os romances de autoria de mulheres negras em suas interpretações?
Mesquinho e humilde livro é este que vos apresento, leitor. Sei que passará entre o indiferentismo glacial de uns e o riso mofador de outros, e ainda assim o dou a lume. Não é vaidade de adquirir nome que me cega, nem o amor-próprio de autor. Sei que pouco vale este romance, porque escrito por uma mulher, e mulher brasileira, de educação acanhada e sem o trato e conversação dos homens ilustrados, que aconselham, que discutem e que corrigem, com uma instrução misérrima, apenas conhecendo a língua de seus pais, e pouco lida, o seu cabedal intelectual é quase nulo. (Maria Firmina dos Reis, Úrsula)
As frases do trecho acima foram as primeiras que o leitor do século XIX leu da pena da romancista precursora do Brasil. Assim mesmo, em duplo sentido: precursora do romance e precursora do Brasil. Não se engane com o tom, cara leitora do século XXI, este acento de justificativa era um código comum entre escritoras que ousaram publicar nos oitocentos. Zahidé Muzart [nota 6] avaliou que a pretensa postura de humildade e inexperiência no trato com a linguagem, revelada por mulheres escritoras nos prefácios de seus livros, constituía uma estratégia pela qual a mulher sutilmente conseguia transpor os limites a ela impostos. Mas, no caso da nossa precursora, subjazendo esse “pedido de desculpas” há uma altivez escancarada, interposta justo ali no duplo verbo saber. Maria Firmina dos Reis sabia. E já que sabia, adiantou-se. Entre o riso e/ou a indiferença dos homens da elite letrada, a primeira romancista do Brasil está (cons)ciente de seu próprio presente no que ele continha de barreira, e está alinhada ao seu devir no que ele contém de revide – no primeiro uso do verbo, a audácia lúcida: sabia das dificuldades de recepção, deu lume ao texto assim mesmo. No segundo verbo, a visão ampla: sabia que a valoração da obra literária acontecia em correspondência imediata com elementos extratextuais, como o gênero e a etnia do autor: sendo ela uma mulher negra, no século XIX escravocrata, enunciou e pronto.
Úrsula, da maranhense Maria Firmina de Reis, é um romance fundador da literatura brasileira. Escrito e publicado no momento em que as narrativas fundacionais da nação e do sujeito nacional estavam sendo elaboradas pela elite letrada. Embora tenha sido lançado no fim do ano de 1859, em 1857 já estava pronto e a caminho do prelo, o que indica que o romance pode ter sido escrito antes ou concomitantemente a O guarani (1857), de José de Alencar. [nota 7] Ambas as obras partilham do mesmo contexto histórico e político, mas, entre os significados para o passado e o porvir que comunicam, existem largas diferenças.
– Tu! Tu livre? ah, não me iludas! – exclamou a velha africana abrindo uns grandes olhos. Meu filho, tu és já livre? (Maria Firmina dos Reis, Úrsula).
No instante em que Úrsula foi lançado no mundo público, ficou inscrito um conteúdo que não existia na ordem discursiva nacional até então. O romance transgrediu o campo mapeado pela ficção brasileira, ultrapassando o limite das águas navegáveis pela imaginação e pelo pensamento no século XIX. Na obra, é do homem negro que brota a medida do humano, e da mulher negra que emerge um arquivo de memória cuja narração fratura o ordenamento colonial que organiza(va) a sociedade brasileira. Esse romance produziu uma significação (dentro e fora do texto) que não apenas confrontava a realidade que a literatura oitocentista produzia, mas que gerou também uma pergunta, e uma forma de perguntar, rastreada em outros romances, que alçam contornos de uma comunidade entre discurso e vida, entre narrativa e experiência histórica, a partir da qual outra interpretação do Brasil emerge, fraturando a “comunidade imaginada” alimentada em diversos romances que compõem o cânone literário nacional.
No campo dialógico desse corpo de romances está composto narrativamente, isto é, com o mesmo padrão de tropos narrativo que molda nossa concepção de história [nota 8], a experiência/pensamento/perspectiva/existência do sujeito negro, a partir da qual outra narrativa do Brasil emerge.
Estas coisas aconteceram em qualquer tempo e em qualquer parte. O certo é que aconteceram. E, como sempre se dá, ninguém apreendeu nada do seu misterioso sentido. (Ruth Guimarães, Água funda)
NOTAS
[nota 1]. Jeanne Marie Gagnebin. “Walter Benjamin ou a história aberta” (Prefácio). BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, v. I: magia e técnica, arte e política. São Paulo: Ed. Brasiliense,1994.
[nota 2]. Toni Morrison em entrevista a Paul Gilroy. In: O Atlântico negro: modernidade e dupla consciência. São Paulo: Ed. 34; Rio de Janeiro: UCAM, Centro de Estudos Afro-Asiáticos, 2001.
[nota 3]. “Corpo de Romances de Autoras Negras Brasileiras (1859-2006): Posse da História e Colonialidade Nacional Confrontada” (Letras, USP, 2019).
[nota 4]. SELASI, Taiye. Bye-bye babar (or. what is an afropolitan?). The LIP Magazine, 2005.
[nota 5]. O conceito de espiral-platantion trabalha com a ideia de continuidades nacionais que mantém certos paradigmas de dominação intactos.
[nota 6]. MUZART, Zahidé. “Artimanhas nas entrelinhas: leitura do paratexto de escritoras do século XIX”. In: FUNCK, Susana Bornéo (Org.). Trocando ideias sobre a mulher e a literatura. Ed. da UFSC, 1994.
[nota 7]. A resenha pode ser acessada no precioso portal: https://mariafirmina.org.br/, idealizado pela pesquisadora Luciana Diogo, que disponibiliza diversos materiais sobre Maria Firmina dos Reis.
[nota 8]. SHOHAT, Ella e STAM, Robert. Crítica da imagem eurocêntrica – Multiculturalismo e representação. São Paulo: Cosac Naify, 2006.