Passamos muito tempo sem livros de Angélica Freitas (foto) entre nós: desde o paradigmático Um útero é do tamanho de um punho (2012) podíamos encontrar inéditos da poeta por revistas, jornais, performances, zines... Canções de atormentar, ora publicado pela Companhia das Letras, traz dispersos e inéditos de Angélica em dose generosa – são poemas em quantidade expressiva e, no todo, se aproximam de nós pela ironia, pela raiva e pela delicadeza. Reunidos, os poemas do novo livro são quase como um caderno a registrar as virações sociais e políticas dos quase dez anos que o distancia do livro anterior. A construção de uma subjetividade de mulher sapatão dos pampas que atravessa a obra, em suas encenações, marca a força política de seus desejos e experiências. A força derrisória do seu humor irônico sobre as instituições representa o sentimento de raiva que sentimos neste fecho de década.
No livro, a raiva (ou por vezes o desgosto) está, por exemplo, nas figurações de misoginia que se atualizam, como mostram conjuntamente traíra (no início da obra) e a performance canções de atormentar (no fim do livro); está na recusa de qualquer chave positiva para a ideia de nacionalidade no Brasil; no esvaziamento da experiência de cosmopolitismo que as roupas made in China realizam; na recusa de metáforas que pensem a natureza como continuidade relacional do corpo humano numa perspectiva de participação – o meio ambiente surge diminuto, cotidiano e urbano, em luz cinza, impossibilitado de ser refúgio para o que se vive hoje e também deslocado de sua abordagem tropical historicamente usada como figuração da potência nacional, da ideia de “país do futuro”.
Portanto, é um livro que ataca a sensação de conforto. Um livro que interdita fantasias que não partam de algo imanente. Isso fica particularmente evidente em mentiras, poema armado como jogo em que cada afirmação absurda é contestada ou ironizada para, só depois, ser explicada – assim, o poema questiona o estatuto de verdade que o discurso de verossimilhança deseja alcançar para fazer passar absurdos. Isso ocorre sem que se esqueça de como o absurdo muitas vezes não é algo da ficção. Verdade e mentira são termos melindrados pela retórica, como o termo fake news, onipresente na nossa vida política, ajuda a lembrar.
Talvez se possa dizer que, nos poemas, o que permite distinguir os absurdos entre si seria a experiência de veracidade do real – que, além da recusa de sentidos “elevados” ou “sublimes”, também pode representar a forma própria por meio da qual a poeta adere ao “partido das coisas”, para usar os termos de Francis Ponge (a quem Angélica lê no poema le cahier du bois de pins).
Essa experiência de veracidade não se constitui exatamente no esforço de apalpar objetos “com os dez mil dedos da linguagem” (como disse João Cabral sobre Ponge), mas de apalpar a materialidade de sua própria história, das opressões, afetos, desejos e momentos de atenção vividos e lançados como base crítica de observação, escuta e interpelação. Isso parece se dar em versos como os que seguem abaixo, um trecho do poema a sônia, surgido a partir de um exercício poético sobre fotos de Claudia Andujar:
querer as pernas
de outra mulher
para depois do amor
ser quadrúpede
alguns dirão
era só
o que nos faltava
*
o que estarás
pensando, azul
de olhos fechados
o que acontece
dentro dessa cabeça
por favor me diz
que pensavas
em coisas banais
(bananas, arraias,
coqueiros, praias)
menos em dinheiro
*
diante de ti
reclinada assim
nua
um homem saberia
exatamente o que fazer
e por isso mesmo
erraria
eles erraram
É da experiência de veracidade de ter um desejo dissidente em um mundo patriarcal e heterossexual, presente no livro desde o primeiro poema, que esses versos podem falar sobre interesses e fronteiras sem que sintamos a menor necessidade de explicações sobre a limitação masculina que figura e as expansões que surgem no não-hegemônico. A ideia de uma experiência de veracidade pode ser, também, literária, como demonstram os poemas que pensam o contato do eu lírico com Ponge, Ana Cristina Cesar e Raymond Carver.
A manipulação da linguagem mostra a força da poeta e resulta em um texto crítico e variado, no qual a suavidade não implica perda de consistência. São exemplos uma leva considerável de poemas que nos envolvem em momentos quase didáticos ou pedagógicos – como o conhecido porto alegre, 2016, uma epifania negativa sobre como a responsabilidade do indivíduo pela comunidade é algo incontornável; ou ainda nos leva ao gesto performático (crítico) de us enimaos, no qual os versos pedem para serem lidos em voz alta.
Também há variações sobre elementos que outros poemas leem em chave negativa. O cosmopolitismo das calças feitas no Camboja de as roupas vêm da ásia colide contra o de para minhas calças, um adeus ao figurino que participou de tantas viagens. Também volta no uso da linguagem estrangeira como ponto de contato e abertura para o cômico em an introduction to mate, e como elemento que participa da aproximação afetuosa entre dicção, memória e leitura em um excelente negócio. O mundo natural é devolvido em potência na imagem difusa de animal, como visto em a sônia (“virar quadrúpede”). Já a onipresença do sistema capitalista é quebrada em poemas sobre amizade. Essa onipresença é quebrada, também, pelo compartilhamento, em jogos escolares, de uma experiência de alteridade surgida em um momento sem trabalho que reverbera ao longo do dia:
jogos escolares
desde as nove da manhã
o time amarelo enfrenta o time vermelho.
no teu tempo isso era educação física,
podia ser também recreio.
o telefone ainda não tocou,
tudo na mesma, nenhum e‑mail.
a gritaria pela janela da cozinha
informa a vitória do time amarelo.
depois a casa se enche de silêncio.
e você sente pena do time vermelho,
mas é só mais tarde, depois do almoço,
que se compadece também do amarelo.
Se as sonoridades de certos poemas poderiam guardar o sentido do título do livro, chegamos ao final da obra com o texto da performance Canções de atormentar, apresentada pela primeira vez em 2017 em parceria com Juliana Perdigão, no qual a sereia não tem qualquer interesse em seduzir o marinheiro: ela quer atacá-lo e resistir ao detestável canto que ele emite (tenho uns amigos, vou te apresentar/ você é tão bonita). Uma encenação que aponta para o contracanto de mulheres em direção às estruturas que as oprimem. Marca a necessidade de revide: “quero dizer que as mulheres têm mais é que afundar navio”, afirmou Angélica sobre a performance, em entrevista de 2018 ao Jornal do Brasil.
Desde o primeiro poema é o subjetivo e o coletivo que surgem indissociáveis e apontando para responsabilidades e revides. O contracanto, pelo conjunto de poemas, deve ser entoado com ironia e raiva, recusar o que não tem atenção à alteridade e à materialidade de experiências de inadequação ou desejo que nunca surgem passivas. Esse contracanto soará como a reunião de mulheres subversivas, o eu lírico e suas amigas assaltantes da rede de lojas 7-Eleven, em queria viver em ouro preto: “riríamos feito convenção das bruxas”.