Foi com urgência que recebi o convite para traduzir a Poesia completa, da Maya Angelou (1928-2014). E foi com a mesma urgência que aceitei esse convite. Urgência. Muitos teóricos discutem o que é traduzir e quais as funções da tradução, mas nesse caso, traduzir a Maya, pra mim, foi honrar sua história, fazendo com que seus poemas possam ser conhecidos por mais e mais pessoas que, talvez, se identifiquem com eles, assim como já acontece com suas autobiografias publicadas no Brasil (Mamãe & Eu & Mamãe, Eu sei porque o pássaro canta na gaiola e Cartas à minha filha). Simplesmente, porque quando ela diz “eu”, está dizendo “nós”, como uma atualização da narrativa escrava (slave narrative) de Frederick Douglass, na qual se molha a ponta da caneta nas feridas do próprio corpo para criar, apesar dos acontecimentos, o roteiro de uma vida, para além das linhas da sobrevivência – algo que tem sido o objetivo de outras escritoras negras, na atualidade.
Urgência. Num momento tão frutífero, no Brasil, se tratando de publicações de traduções de escritoras e teóricas negras.
Urgência. No mesmo país, onde seguem matando Marielles, Cláudias, Marcos Vinícius, Ágathas, Evaldos e encarcerando tantos outros, mesmo quando se reforça, discursivamente, uma democracia racial inexistente. Por isso, apesar dessa coleção compreender os livros Apenas me dê um copo de água gelada antes que eu morra (1971); Oh, reze para que minhas asas me caiam bem (1975); E ainda assim eu me levanto (1978); Shaker, por que você não canta? (1983) e Eu não serei levada (1990), e ser um mergulho profundo nos Estados Unidos da época, reconheço nos poemas a atualidade do que nós, negros, ainda vivemos no Brasil. Portanto, é uma publicação urgente porque está atrasada.
Urgência. Maya Angelou foi dançarina, cantora, diretora e escritora; uma artista completa. Mas, antes de tudo, foi e continua sendo uma mulher extraordinária, como afirma no poema de mesmo nome. E uma professora. A importância de termos todos os seus poemas traduzidos para o português dialoga com a importância que a palavra e a poesia tinham para ela. Aos sete anos, Maya foi estuprada. Por ter dito o nome do estuprador ao seu irmão e, dois dias depois, ele ter sido encontrado morto, ela acreditou que sua voz poderia matar; “melhor não falar”, pensou. E passou cinco anos nesse estado de mudez, até que uma senhora que morava na mesma cidade e que costumava levá-la à sua casa, para que a escutasse lendo poesia, disse: “Maya, você nunca vai gostar de poesia até que recite, até que a sinta rolar pela sua língua, sobre os dentes, através de seus lábios. Você nunca vai gostar”. Diante dessas frases, Maya foi para debaixo da casa e tentou recitar um poema. A poesia foi uma libertação e, através dela, como sua avó acreditou, Maya ensinou muita coisa ao mundo. E essa relação com o poder da palavra perdurou ao longo de sua vida. Costumeiramente, ela reclamava com as pessoas que falavam palavrões ou usavam expressões vulgares.
Urgência. Por saber de sua exigência ao escrever seus poemas, durante meu processo de tradução, muitas vezes, eu parei e me perguntei: “Maya, é isso mesmo que quer eu faça?”. Algumas vezes, essa pergunta era feita através de uma lágrima que rolava pelo meu rosto. Em ambas as situações, não esperava respostas sobrenaturais, buscava reconhecer em nós alguma semelhança que possibilitasse transcriar seus poemas com as palavras que cabem na minha boca. E essa identificação sempre chegou, de uma maneira ou de outra, quando os poemas eram carregados da oralidade das ruas americanas, ou quando Maya falava sobre suas relações amorosas e familiares, ou sobre suas viagens, ou sobre o resgate de sua ancestralidade, pois o que atravessava todas essas circunstâncias era sua condição de mulher negra. Assim como eu. Mas o reconhecimento de alguma semelhança não se limita a raça ou ao gênero.
Urgência. Numa das últimas entrevistas que concedeu, Maya disse, em tom jocoso, que gostaria de transformar todos em afro-americanos pelo menos por uma semana, para que soubessem como é. Soubessem como é entrar no ônibus ou em qualquer transporte público e ver as pessoas te olhando como se tivesse roubado o leite do bebê. Olharem e virarem a cara. E ainda dizerem “Eu te perdoo. Eu não quero começar nenhum protesto racial, eu te perdoo e eu me perdoo”. Ouso dizer que Maya sabia que isso não era necessário para criar reconhecimento com a sua escrita. Pois sua obra resulta, sim, no que sempre buscou: que os leitores pensassem, depois de lê-la: “nunca pensei dessa forma antes”, já que ela conseguiu aproximá-los de suas experiências porque a convocação que fazia é geral e os benefícios da igualdade, na qual acreditava, para todos. Embora tenha nos mostrado, no poema Sobre o proletariado progressista branco (“Então, eu acreditarei na ajuda dos progressistas para nós / Quando eu vir um branco carregar a arma de um negro”), que apenas reconhecer a batalha pela igualdade não é suficiente.
Urgência, lembram? Que, com a mesma urgência com que eu recebi o convite para traduzir a Poesia completa, da Maya Angelou, e com a mesma urgência com que aceitei esse convite, esse livro seja lido. E pensado, como nunca antes.