Isabel Lucas Site JAN 1

 

Esta é a sexta reportagem da série Viagem ao país do futuro, na qual Isabel Lucas pensa o Brasil a partir da literatura e da realidade que a ficção representa. O trabalho é publicado em parceria com o jornal português Público. Exceto em situações que criem ambiguidade em relação ao português brasileiro, a grafia mantém o original da autora, escrito de acordo com o português de Portugal.

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Curitiba, a cidade “mais mental do que física”, centro da obra do recluso Dalton Trevisan, é um lugar mítico por onde os vampiros podem caminhar, invisíveis, como todos os que nela habitam. Real, imaginária, conservadora, introvertida, a capital do Paraná é uma estrangeira no Brasil, mas o Brasil existe nela.

Consta que todos os dias, pelas onze e meia, hora discreta, o escritor almoça no mesmo restaurante — um vegetariano — na baixa de Curitiba. Vai sozinho e leva sempre um boné na cabeça. Consta também que tudo isto pode ser mentira. Uma hora depois dessa hora mítica alguém entra numa livraria junto à Universidade Federal do Paraná — a mais antiga do Brasil —, afinal consta que o escritor também frequenta essa livraria. Pergunta por ele. Como resposta, há uma gargalhada. “Seu Chain, o Dalton ‘tá aí?”, grita para o interior da loja o rapaz da caixa registradora. “O Dalton?! Procura debaixo do balcão”, sugere um homem que sai da penumbra. Calvo, olhos claros, suspensórios sobre a camisa de manga curta, sotaque ligeiramente estrangeiro, com acento entre o germânico e o árabe, e um ar de troça. Ele sabe que podemos viajar eternamente por Curitiba atrás de Dalton, seguindo pistas falsas, numa espécie de perdição fantástica, labiríntica. Dalton, o escritor, nunca está. Dalton escapa sempre.

Dalton Trevisan é conhecido como o vampiro de Curitiba, designação que aplica ao escritor o nome de um dos seus livros mais famosos, publicado em 1965. Como o vampiro, ele existe secretamente, sorrateiro, sugando as histórias do quotidiano da cidade onde nasceu em 1925, e que depois trabalha, literariamente, em textos meteóricos, cheios de ironia, violência, erotismo. Seu texto é marcado por uma grande economia de palavras, muito próximo da poesia, com protagonistas que são invariavelmente pessoas à margem, gente comum ou, segundo a designação de alguns críticos, uma “Curitiba menor”. É a que lhe interessa e é essa que o escritor sorve com avidez.

Numa das raras entrevistas que deu, publicada em 1968 no extinto Jornal da Tarde, de Curitiba, Dalton Trevisan afirma: “O escritor é uma pessoa que não merece nenhuma confiança. Um amigo chega e me conta as maiores dores; eu escuto com atenção, mas estou é recolhendo material para mais um conto. E eu sei disso na hora. Surge, então, a má consciência. Sei que estou fazendo assim e não desejaria fazer, mas não há outro jeito. O escritor é um ser maldito”. E, nesse contexto, declarou: “Todo o escritor é um monstro moral”.

Talvez o escritor pertença, naturalmente, à margem de que se alimenta. “Na boa literatura, a margem está sempre no centro do olhar”, lê-se em Literatura à margem, conjunto de ensaios literários da autoria de Cristóvão Tezza, escritor natural de Santa Catarina a viver em Curitiba desde os oito anos, autor de romances como O filho eterno (2016), A tradutora (2007) ou A tirania do amor (2018). Tezza enquadra a obra de Trevisan entre as mais atentas à margem. Detém-se em prostitutas, chulos, empregadas de balcão, bêbados, drogados, canalhas, velhos e estropiados, gente da periferia atraída pelo sonho burguês da cidade grande que não tardará a esquecer o sonho, tão concentrada na necessidade de subsistir; são dele também a escória e a desolação, o interior das casas decrépitas de persianas corridas, a velha que só quer mais uma cerveja para fingir que não vê a devassidão da neta. Uma Curitiba provinciana e não a Curitiba moderna “para inglês ver” — palavras de Dalton —; um lugar onde Deus só existe em imagens. É neste mundo que encontramos Dalton Trevisan, o escritor que escolheu viver apenas na sua fantasia, recluso por vontade própria numa casa no bairro Alto da Glória, perto do Teatro Guaíra, vinte minutos a pé da Praça Osório e do seu relógio “que marca implacável seis horas em ponto”. O vampiro fintando a curiosidade dos meios de comunicação, ou de todos os que querem saber dele mais do que ele quer dizer, e ele não quer dizer nada.

“É notável a fascinação que essa pobre fauna exerce sobre o contista e tudo exclusiva e rigorosamente debaixo de um interesse de análise psicológica, de conhecimento do homem, pois o sr. Dalton Trevisan não é político, ou, pelo menos, não pretende fazer de sua arte um veículo de intenções políticas”, escreveu o crítico literário Wilson Martins no número 14 da revista Joaquim, publicação fundada em 1946 por Dalton Trevisan “em homenagem a todos os Joaquins do Brasil”. Pretendia ser a voz de uma geração de modernistas a que foi dado o nome de Geração de 45. Teve 21 edições e contributos de nomes como Antonio Candido, Mário de Andrade, Candido Portinari, Di Cavalcanti, Carlos Drummond de Andrade e Vinicius de Moraes. Terminou em dezembro de 1948.

O Prêmio Camões em 2012, autor de 45 livros, todos contos e novelas e um único romance, A polaquinha (1985), fez de Curitiba a sua geografia literária, muito pessoal, fechada, fora dos espaços abertos, encerrada nas paredes e oculta pelas sombras. Uma Curitiba que ele ama e odeia com o mesmo vigor. Foi lá que nasceu Dalton Jérson Trevisan numa família abastada, proprietária de uma fábrica de vidros onde o escritor trabalhou antes de se formar em Direito pela então Universidade do Paraná. Chegou a exercer, mas deixou para se dedicar à escrita e criar uma Curitiba mítica, síntese da real e da ficcional, que ultrapassa as fronteiras da capital do Paraná e se torna metáfora do próprio Brasil. Não é a Curitiba urbanizada por Jaime Lerner, prefeito em três mandatos, o primeiro em 1971 (como prefeito biônico), o último em 1989. A abertura de ruas a peões e a criação de vias exclusivas para transportes públicos atraíram investimento: construiu-se um polo industrial, investiu-se na educação, no saneamento, a política do uso do solo agrícola foi repensada. Quis uma Curitiba modelo, um ideal para exportar. Curitiba divide-se antes de Lerner e depois de Lerner, e depois de Lerner houve o crack e as cracolândias e houve o Mundial de Futebol.

A Curitiba de Trevisan não é essa. A Curitiba de Trevisan é a “Curitiba das ruas de barro com mil e uma janelinhas e seus gatinhos brancos de fita encarnada no pescoço; da zona da Estação em que à noite um povo ergue a pedra do túmulo, bebe amor no prostíbulo e se envenena com dor de cotovelo; a Curitiba dos cafetões — com seu rei Candinho — e da sociedade secreta dos Tulipas Negras eu viajo”.

O sentimento de pertença a esse lugar que parece ter-se perdido nas décadas de trinta e quarenta do século XX vem numa espécie de manifesto poético acerca da sua relação com a cidade onde nasceu numa família da classe média alta. O título? Em busca de Curitiba perdida (1992), um quase poema, afinal sobre uma cidade que persiste, sobretudo, na memória. Na lembrança das pessoas que a habitaram, mas também nas camadas do edificado, no dia a dia de quem a percorre. Mais ou menos subterrânea, revela-se em imagens, sons, numa atmosfera que se pressente antiga. Está, por exemplo, na freira que caminha ao sol do meio-dia pela rua Cândido Lopes, em direcção à Praça Tiradentes. Quando passa, deixa uma sombra breve, quase uma mancha que a persegue nos seus passos miúdos; está no homem que apregoa o cardápio de almoço de um restaurante próximo. “Costela ao molho, frango à passarinho; é do lado da Galeria Andrade!”. Está na roupa estendida no terraço de um prédio ou no toque do sino do Bom Jesus dos Perdões, na Praça Ruy Barbosa, onde a escritora Helena Kolody (1912-2004) ia rezar.

É a cidade enquanto palimpsesto, camadas de tempo a conviverem num espaço com uma população que se multiplicou por seis em cinquenta anos. Dos 350 mil habitantes da década de sessenta passou a um milhão e setecentos mil em 2010, e estima-se que esteja próximo aos dois milhões, o que faz de Curitiba a oitava cidade do Brasil, com uma extensão “bem além do tamanho do nosso passo”, diz ainda Tezza; desta vez no texto Um olhar de Curitiba, apresentado em 2003, na Biblioteca Mário de Andrade, em São Paulo, parte do ciclo de palestras “Viagem pelas metrópoles brasileiras: Arte, história, política e cultura”. “O notável crescimento por que passou a cidade (...) povoou-a, é claro, de gente de fora, e em vários estratos sociais; pela beirada, como costuma acontecer, a periferia curitibana foi se enchendo de favelas, de ocupação de terrenos, de sub-moradias, de todo esse espectro profundamente brasileiro que define nossas migrações internas”, afirmou então Tezza.

Agora, em entrevista ao Suplemento Pernambuco, diz: “A Curitiba moderna, que revolucionou o sistema de transportes e vários aspectos da ocupação e do uso urbanos, e se transformou numa referência nacional e internacional, foi uma criação relativamente recente, que se fez a partir de uma tábula rasa à espera de alguém que lhe desse um rosto, a partir de um potencial poderoso e insuspeitado: o jeito curitibano de ser. Dizendo de outro modo: Curitiba só daria certo em Curitiba.”

Já o curitibano... “O curitibano — se é possível arriscar uma generalização nesta área movediça — é um cidadão obediente, silencioso, discreto, conservador, habitante perpétuo de um casulo de proteção.” Vivem num ambiente “politicamente muito conservador”, e socialmente indistinto do resto do Brasil. “Curitiba é apenas o Brasil, sem tirar nem pôr, com os exactos problemas do país inteiro”, afirma Tezza, referindo-se à violência e à desigualdade social. E, culturalmente, “uma cidade conceptual, profundamente marcada pela criação urbana promovida pelos projetos do prefeito Jaime Lerner na virada dos anos 1970”. É aí a gênese da tal Curitiba moderna, ou, como lhe chama Trevisan, jocosamente, no texto Em busca da Curitiba perdida, “a enjoadinha”, contra a qual escreve, em defesa de uma cidade arcaica, provinciana, que não dá ares. A dele é a “Curitiba em passinho floreado de tango que gira nos braços do grande Ney Traple e das pensões familiares de estudantes”; a “Curitiba cedo chegam as carrocinhas com as polacas de lenço colorido na cabeça — galiii-nha-óóó-vos — não é a protofonia do Guarani? Um aluno de avental branco discursa para a estátua do Tiradentes.” Contra o que não é isso, vocifera: “ah! que se incendeie o resto de Curitiba porque uma pensão é maior que a República de Platão, eu viajo.”

A caminhada

E é como se escutassem passos na calçada, nos passeios estreitos alguns, escuros, inclinados, com pedras soltas; passadas hesitantes ou apressadas de um viajante solitário, homem ou mulher, de olhos no chão para não tropeçar, introspecto, secreto, também ele um vampiro que, mesmo não querendo, se torna invisível nas ruas e se alimenta dessa invisibilidade. Esses passos ecoam entre as torres cada vez mais altas do centro, ou dos centros que têm nascido. Paralelepípedos com janelas que foram substituindo os quintais e o casario baixo tradicional. Tudo a um ritmo muito rápido como numa imagem acelerada, um fast-forward na gravação do tempo e da transformação do espaço nesse tempo. Curitiba, a cidade modelo da década de noventa, reinventada pelo prefeito. Curitiba, a pequena urbe rural cujo carácter tem sido dissecado por Trevisan. Uma e outra parecem coexistir. Segundo Cristóvão Tezza, o escritor tem revelado “o universo arcaico de um país primitivo que resiste teimosamente à modernização, em fragmentos de vidas secas no néon da sua Curitiba mítica”. Ou seja, é o Brasil também enquanto uma imensa margem.

Nela cabem vidas como a de Nelsinho, protagonista de O vampiro de Curitiba. “Nelsinho de Tal, menor, treze anos, estudante, na noite de vinte e três, conversando debaixo da Ponte Preta com seu primo Sílvio e dois rapazes, deparou três soldados e um paisano atacando uma negrinha, a qual foi atirada ao chão, em seguida, desfrutada pelo civil e, por causa dos gritos, tinha um casaco na cabeça. Ele chegou-se meio desconfiado. Depois do paisano, a vez dos três soldados e, afinal, a de Nelsinho, seguido de Sílvio.”

Nelsinho é o vampiro curitibano, única personagem a atravessar os quinze contos que compõem o livro onde a mulher aparece como figura semitrágica a quem está reservado um papel meramente sexual ou erótico. É quase sempre assim com Dalton Trevisan: a mulher é objeto de adoração ou de violação; é sedutora ou devassada pelos homens que a olham e a usam enquanto corpo, matéria. Chame-se Elisa, Neide, Laura, Olga ou não tenha nome, a mulher só existe em relação ao homem aqui personificado na figura de Nelsinho, nome de guerra “Nelsinho, o delicado”, criatura obcecada por sexo com inquietações deste tipo: “por que Deus fez da mulher o suspiro do moço e o sumidouro do velho?” E que crê que “toda a família tem uma virgem abrasada no quarto”. Seguindo esse pensamento, Nelsinho percorre as ruas de Curitiba e Trevisan dá conta desse percurso num texto feito de frases curtas e soltas, marcado pela oralidade e por um trabalho de linguagem que potencia uma sensação de perdição. Ou de riso ácido.

“Ao calor das três da tarde, dormia a cidade sob o zumbido das moscas. O rapaz de linho branco dobrou a esquina — ‘Eis que eu vejo a sarça ardente’ —, o asfalto mole e pegajoso debaixo dos pés. Todas as ruas desertas, mas não aquela, apinhada de gente e de tal maneira que transborda das calçadas. ‘É um enterro’, disse consigo, ‘mas não há morto.’ Arrastava-se o estranho cortejo por dois ou três quarteirões e voltava sobre os passos na busca aflita do defunto, com grupos que, ao longo das portas, apertavam-se e de repente se desfaziam — ‘Onde está Verónica’, indagou ele, ‘que não canta?’ Procissão triste e preguiçosa, metade a ir ou a voltar e a outra metade imóvel, enquanto o cadáver, cujo fedor sebento empesta o ar e move asa alucinada das moscas, jazia no interior de uma das casas, ainda que ninguém soubesse qual — os curiosos insinuavam as cabeças à sua procura pelas portas e janelas escancaradas. Procissão ou enterro, seguia um destino conhecido de todos. (...) Às portas e janelas, no místico velório, estavam alinhadas às viúvas que carpiam o mesmo defunto e pareciam de ouro na sua cara pintada. Enquanto os homens (era enterro ou procissão unicamente de homens) estavam decentemente trajados, as mulheres, empurrando-se umas às janelas e às portas, em virtude do fogo que ardia no porão das casas decrépitas, vestiam apenas calcinha e sutiã de cores berrantes, onde predominava o vermelho, o azul e o amarelo e, assim à vontade, eram damas de grande luxo, uma ou outra com sandália púrpura.”

Não há referência a um nome de rua, de praça, a identificação de um lugar, mas as personagens de Dalton Trevisan apenas se podem mover dentro da sua Curitiba mítica. É esse lugar que lhes dá consistência. E que pouco tem a ver com a “República de Curitiba”, designação criada para referir um à-parte, uma singularidade, no território brasileiro.

Cristóvão Tezza desmontou a formulação numa entrevista ao El Pais, em 2018: “A República de Curitiba foi uma expressão criada pela verve de Lula para denunciar uma suposta conspiração jurídica que curiosamente, teve um efeito contrário: em geral, o curitibano se orgulha da sua república. Há complexas variáveis sociológicas a considerar, mas basta frisar que Curitiba — o ‘Brasil diferente’ de que falava o escritor Wilson Martins — é uma cidade marcada na origem pela imigração europeia, que legou traços culturais predominantemente conservadores, um espírito que vem resistindo a todas as transformações demográficas e modernizantes que a cidade viveu nas últimas décadas. Nesse sentido, a Operação Lava Jato e a prisão de Lula não mudaram absolutamente nada na cidade. (...) Do ponto de vista institucional, não tenho medo da tal ‘República de Curitiba’ que, afinal, só é daqui por acaso da jurisdição. Tenho muito mais medo, por exemplo, da poderosa república paralela que matou Marielle. Esta, sim, é verdadeiramente assustadora.”

Isso ainda não está nos romances, na ficção. É cedo, há um excesso de presente para ser digerido pela literatura. Mas este presente pode ser lido à luz do que já foi escrito, com os referentes da cidade, do país, da literatura universal. O Brasil existe no mundo e é do mundo que fala Trevisan sempre que escreve a partir de Curitiba. Nos contos, desde a publicação de Novelas nada exemplares, o seu livro de estreia em 1959, como na viagem mais ou menos poética, cheia de simbolismo, ironia e zanga de Em busca de Curitiba perdida.

Trevisan vocifera contra a imagem que Curitiba quis exportar e que Tezza mais uma vez resumiu na palestra da Mário de Andrade. “Certamente nenhuma outra cidade brasileira conseguiu construir uma imagem tão indiscutivelmente positiva, no imaginário brasileiro e internacional, como Curitiba. A mesma Curitiba que, para Dalton Trevisan é a ‘Curitiba oficial enjoadinha ufanista / toda de acrílico azul para turista ver’, é para milhares de pessoas uma espécie de paraíso urbano possível, a cidade cultural do Brasil, o grande centro do teatro brasileiro, a cidade ecológica brasileira, a ciidade que tem o melhor transporte, etc.”

“O Dalton parte da cidade que conheceu na sua infância e adolescência, a Curitiba dos anos 1930, e a reelabora dentro do seu imaginário. De lá para cá, a cidade saltou de cem mil para dois milhões de habitantes — ou seja, inchou vinte vezes”, diz Roberto Muggiati, o jornalista que Dalton Trevisan conheceu nos anos 1950 quando frequentava a redação do jornal Gazeta do povo à cata de histórias que alimentassem a sua literatura. Muggiati falava para uma reportagem publicada em 2014, neste Suplemento Pernamubuco, quando se anunciava mais um livro de Trevisan, O beijo na nuca, o último que o escritor publicou até agora. Assinado pelo escritor e músico — também de Curitiba — Luís Henrique Pellanda, o artigo acrescenta que Muggiati traça uma “relação áspera entre Curitiba e seu vampiro”, com o jornalista a afirmar que “Dalton sempre soube como captar sutilmente as mudanças por que vem passando a capital do Paraná”, e, escreve Pellanda, retratando “com perfeição a nossa vasta periferia, e as nossas cracolândias, sempre com alma de repórter policial”.

A Curitiba atravessada pelo vampiro Trevisan é uma cidade de muitas faces, contém os lugares da sua memória, os das suas angústias e desejos, não é a Curitiba maquilhada alvo de todo o seu desdém; é a misteriosa, a das traições amorosas, da pornografia, dos interditos, do dia a dia dos desvalidos, da acidez como resposta ao mundo. Contém desdém, desespero, raiva e luxúria, pode não ser encontrada fora da literatura de Trevisan, que é o mais próximo que se consegue do próprio Trevisan.

O mito

Situada num planalto a cem quilómetros do Oceano Atlântico, Curitiba foi fundada no final do século XVII por uma comunidade de bandeirantes e tornou-se, no século XIX, capital da então recém-autónoma Província do Paraná. Fica no cimo de um planalto, mas a sensação é a de uma planície que se estende pelas bacias dos rios Iguaçu e Barigui. Não demorou a tornar-se uma das cidades mais miscigenadas do Brasil, com a vinda de imigrantes europeus sobretudo da Ucrânia, Polónia, Alemanha e Itália. É nessa diversidade que nasce Curitiba, uma cidade de estrangeiros, nas palavras de Tezza. “Alemães, poloneses, ucranianos e, mais tarde, italianos e outros povos foram ocupando essa terra e ao mesmo tempo definindo-a. Se os italianos criaram, entre outros, o enclave de Santa Felicidade (o mais famoso), que a rigor parece outra cidade, cabendo nela todos os chavões simpáticos que atribuímos a eles, o riso fácil, a comida farta, o espalhafato dos restaurantes o gosto ostensivo pelas marcas folclóricas da origem e mesmo o kitsch poderoso que vai criando uma Itália imaginária de isopor e bandeiras para consumo de ônibus de turistas [...] coube [...] aos alemães e eslavos cuidarem do coração duro da cidade, aquela estranheza primordial, quase metafísica, de quem de fato não se sente em casa em lugar nenhum do mundo, porque o mundo é uma realidade permanentemente hostil.”

Quem chega à noite a Curitiba não tem a percepção da silhueta da cidade. Limita-se a ser o passageiro silencioso de um carro que, saído do Aeroporto Afonso Pena, avança por ruas ladeadas de oficinas de automóveis grafitadas, casas modestas de um piso, churrasqueiras, lojas de pneus, bombas de gasolina, igrejas evangélicas, semáforos que abrem e fecham com maior frequência à medida que a malha da cidade se adensa e ela cresce em altura. Prédios cada vez mais altos, torres de muitos andares. Vinte, trinta, talvez mais. Chove e pelo vidro do carro perde-se a noção das três dimensões. É uma espécie de suspensão do real, olhar uma fotografia desfocada pontuada por luzes de muitas cores em fundo negro sem lua. Parece um cenário de abandono numa qualquer distopia urbana, sem gente na rua e onde os únicos ruídos sãos os das sirenes de ambulâncias e o pára-brisas do automóvel. Curitiba só se deixará ver quando amanhecer. Naquele momento é só uma ideia. E ao nevoeiro da manhã a cidade ganha corpo. Do décimo sexto piso de uma torre no bairro do Batel, considerado um segundo centro de Curitiba, com hotéis, centros comerciais de luxo, restaurantes de cozinha internacional, homens e mulheres a segurar cachorros pela trela sem cruzarem o olhar, gente que sai apressada de um autocarro, a cabeça apertada nos ombros contra o vento; dali a vastidão sobressai, mas nem dali a cidade parece mais real. Quem chega à noite, como um típico habitante do centro, não nota a existência da periferia.

As 109 favelas da cidade-modelo, a “cidade ecológica do Brasil”, a “capital das Araucárias”, a “mais sustentável” das capitais brasileiras, também chamada de “capital europeia do Brasil”, ficam invisíveis. Uma invisibilidade imoral, para aplicar uma expressão que Trevisan desprezaria se aplicada à sua literatura, já que ela é o oposto disso. Curitiba é, afinal, a 5ª cidade do país com maior número de favelas — dados de 2014 —, depois de São Paulo, Rio de Janeiro, Fortaleza e Guarulhos, e era a oitava a registar o maior crescimento da população a viver em favelas. Outro dado contrastante com a ideia de modernidade: em 2016 Curitiba era a capital brasileira com maior índice de consumo de drogas entre adolescentes. A cidade regista, no entanto, um número recorde de diminuição de homicídios. Em agosto de 2019, a Gazeta do Povo, único jornal de Curitiba — há um ano apenas com edição online — noticiava que a taxa de homicídios caiu 34 por cento nos últimos dez anos. São números que não se vêem, mas que Rodrigo pressente. Sobretudo os últimos.“Curitiba é uma das melhores cidades do Brasil. O Brasil é muito pobre e desorganizado e aqui tem segurança e organização do trânsito; tem polícia; não tem muito assalto no centro como nas outras capitais. Só se for para fora, mais longe.” Tem 28 anos, é de Curitiba, já morou no Mato Grosso, mas voltou “para o frio do Sul”. “Por causa da organização”, sublinha, sem pousar o telemóvel onde deixou um jogo em pausa. Trabalha num bar em frente ao Museu Oscar Niemeyer, o MON, também conhecido como Museu do Olho, na zona Norte da cidade. “Lá mais pra baixo, no centro, tem um pouco de gente pobre porque param os ônibus dos bairros. O povo tem medo disso, acha que pobre é perigoso, sabe.” Olha o telemóvel num silêncio prolongado, o café por beber em frente, e retoma: “As coisas pioraram, mas agora estão melhorando. O assalto caiu bastante desde que veio o presidente novo. Bolsonaro colocou ordem no país. Isto estava virando a maior confusão”.

O sol da primavera paranaense aquece, ilumina a construção de Niemeyer e projecta-o na vasta piscina que o circunda. Inaugurado em 2002, teve como base um antigo edifício desenhado pelo próprio Niemeyer e tornou-se o maior museu de arte da América Latina, referência no circuito de exposições internacionais. Fica no bairro Centro Cívico, junto aos principais edifícios governamentais, um conjunto urbano classificado onde, num domingo de sol, se fazem piqueniques no jardim. É um dia de setembro. Lula da Silva ainda está preso na sede da Polícia Federal, a menos de seis quilómetros. Os cães correm na relva, há leitores solitários em bancos de jardim, à sombra de árvores, uma paz em nada perturbada pelo gigantesco olho desenhado por Niemeyer, o corpo principal do museu. É um olho apontado à cidade, espécie de olho panóptico, permanentemente vigilante na nova Curitiba que, como Rodrigo, preza a segurança e a ordem e não conhece ou despreza Trevisan.

Jair parte dali e conduz até ao vizinho bairro Cabral, onde em 1976 um camião carregado de dinamite explodiu matando duas pessoas e ferindo mais de oitenta. É filho e neto de imigrantes da Catalunha. Orgulhoso, exibe as origens quando insiste em dizer o nome completo carregando no sotaque de Espanha: Jair Benedito de Campos. Jair é do interior do Paraná, de Arapoti, cidade 250 quilómetros a noroeste de Curitiba. “Não há lugar no mundo melhor do que Curitiba, mas a minha cidade também é muito boa. As pessoas mais trabalhadoras e mais honestas do Brasil estão no Norte de Paraná, que começa em Arapoti. Quem nasceu lá se chama de pé vermeiô, não é vermelho, é ver-mei-ô”, precisa, separando cada sílaba. “Tem até uma marca de feijão com esse nome.” Enquanto guia leva o rádio sintonizado numa estação evangélica. “Sabe que é aqui que o Lula está preso, perto de onde cê vai? Pode até visitar ele depois, se quiser. Nós temos ódio e raiva dele. O Paraná não gosta do PT. Nem do PT nem do Lula. Foi ele que afundou o país. É o ladrão comandante.” Olha pelo retrovisor como que a testar o efeito do que diz, e põe fim ao tema político: “Bolsonaro é bom”. Prefere falar de religião. “Sou da Igreja do Evangelho Quadrangular. Nasceu nos Estados Unidos há uns cem anos criada por uma mulher chamada Aimee McPherson.” Conta que começou porque tinha um amigo da Assembleia do Reino de Deus. “Ele lia e me deu a ler a Bíblia. Aprendi, gosto muito de ler. Leio tudo quanto é livro bom. Por exemplo, tenho outro amigo que é de uma religião chamada Hare Krishna. Ele deu-me um livro deles hoje mesmo, eram umas nove e meia da manhã, e já li 27 páginas. Quero saber do que é que ele fala, gosto de saber o que está acontecendo. Mas sou do Evangelho Quadrangular, estudo a Bíblia. Sou curioso, leio tudo como jornal.”

Jair tem 64 anos, um filho caçula de oito, uma filha com 19 e o mais velho com 33. “O mais velho é da primeira esposa, depois fiquei viúvo. Ela era pastora da igreja evangélica. A minha nora tem 27 anos e também é pastora. Casei outra vez e tive mais dois filhos. Todos gostamos de estudar.” A viagem é curta, no fim, Jair aponta o céu. “Já viu azul mais bonito?”

Será esse o azul a que se refere Dalton Trevisan em Em busca de Curitiba perdida? “Curitiba, onde o céu azul não é azul, Curitiba que viajo.” Talvez a Curitiba de Trevisan esteja mais perto do céu.

A par com os textos de Trevisan, Cristóvão Tezza vai ajudando a desvendar a cidade concreta, a mesma que no seu romance A tradutora (2016) alguém chama de “cidade fora do mundo”. O romance refere-se ao encarceramento. Beatriz tem a tarefa complicada de traduzir do espanhol barroco o escritor catalão Filipe T. Xaveste numa altura em que a realidade se precipita. É véspera do campeonato do Mundo de Futebol, em 2014, Curitiba quer um estádio e Beatriz acaba por ser atropelada pelo imediatismo da tradução burocrática, institucional, do marketing desportivo. Interpelada por um dirigente internacional para que lhe mostre a cidade conclui: “é uma vergonha, nasci aqui e não conheço Curitiba. Não há nada para fazer em Curitiba, como é que você aguenta essa cidade, disse-lhe Donetti num dos primeiros encontros deles, com a sutileza costumeira, ela comentaria depois, e Beatriz riu alto, pois este é o nosso charme, uma cidade secreta, e ele disse, adoro essa pronúncia lêitê quêntê, e ela se preocupou, como flagrada no erro: Aparece muito na minha fala?!”

Quando se tenta saber do vampiro ele escapa, quando se quer conhecer a cidade ela parece escapar também. Etérea, imaterial, improvável. Falsa? Uma edificação gigantesca marcada pelo vazio que quer a todo criar uma identidade sem saber que talvez essa identidade passe por essa indefinição, ou desadequação. Será, como o escritor, como as personagens do escritor, uma cidade à margem? Andar por Curitiba e querer sugar-lhe a alma, como o vampiro, é um acto fracassado à partida. Anda-se, então, por Curitiba como por um território irreal, com problemas concretos. Há sem-abrigos nas ruas, correntes de ar nas ruas, frio nos tubos onde se esperam os autocarros; há consumidores de crack como zombies e há o preconceito de todo o Brasil, de todo o mundo. O negro é quem serve à mesa, mais do que aquele que se senta à mesa. O pobre é olhado como ameaça. E há o céu em fim de inverno, início de primavera de meados de setembro.

“Eu poderia dizer que Curitiba tem, no inverno, o céu azul mais bonito do Brasil (...), mas o curitibano não pode contemplá-lo com frequência, porque, como nossas calçadas são as piores do mundo (...) temos de andar olhando para o chão, o que também faz sentido e dá uma certa solidez ao princípio curitibano universal de nunca dar um passo maior do que as pernas. Olhar o céu e andar ao mesmo tempo são actividades incompatíveis para o curitibano.”

Cristóvão Tezza nasceu em Santa Catarina, o estado vizinho a Sul do Paraná e é considerado o sucessor literário de Trevisan. Não pelo estilo, mas pela qualidade da sua escrita. “Dalton Trevisan é uma presença incontornável do conto brasileiro; mais que isso, é um escritor que criou uma linguagem própria inconfundível, uma visão de mundo pessoalíssima. Eu sinto a literatura dele, a partir de O cemitério de elefantes, como o momento em que o clássico mundo mentalmente rural e agrário que definia o Brasil (inclusive literariamente — vejo a mitologia de Guimarães Rosa como modelo) se choca com violência com a explosão urbana do país, na virada dos anos 1960 e 1970, numa fratura sem volta. A pequena e sufocada Curitiba de Dalton como que ilustra essa batalha em cada frase”, contextualiza Tezza depois de dizer: “Do ponto de vista literário, somos planetas distintos, até pela marca dos géneros: ele é substancialmente um contista, eu sou substancialmente um romancista.” Será então um herdeiro de Trevisan no sentido em que, como ele, conseguiu furar as fronteiras de Curitiba e afirmar-se no contexto brasileiro. Trevisan inscreveu o mapa de Curitiba no grande atlas da literatura brasileira. O poeta Paulo Leminski seguiu-o nesse percurso, mas morreu em 1989. Tezza é o único escritor curitibano vivo a poder concretizar essa expansão.

“Cheguei a Curitiba aos oito anos de idade, e praticamente nunca mais saí. Mas o facto de eu não ter nascido aqui (embora me sinta curitibano), sempre dá um toque ‘estrangeiro’ no olhar, um estranhamento de origem, o que literariamente é uma dádiva. Para mim, Curitiba é antes de tudo uma ‘atmosfera’, um jeito marcante da cidade que se diferencia em muitos pontos de um Brasil mais ‘típico’, por assim dizer. Para mim, é uma cidade mais mental que física”, diz Cristóvão Tezza. Talvez, essa eterna, permanente estranheza seja afinal parte do DNA de Curitiba.

Tezza chegou depois da morte do pai. O luto e a solidão urbana marcaram esses primeiros tempos. Em Literatura à margem conta: “além das dificuldades da sobrevivência, a atmosfera curitibana, que então me parecia sombria, pouco amigável, era em tudo o contrário do
que eu até então vivera. Foram dois ou três anos traumáticos para mim.” A experiência leva-o a uma constatação: “a infelicidade produz literatura.”

 

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Os escritores

Estará aí a génese de uma das ideias míticas sobre Curitiba, a de que é uma cidade de escritores? Dalton Trevisan, Paulo Leminski, Alice Ruiz, Jamil Snege, Helena Kolody, o próprio Cristóvão Tezza nasceram ou adoptaram Curitiba como espaço da sua literatura. Isso não é, no entanto, suficiente para que outro escritor, José Castello, acredite que tal se deva à atmosfera introspectiva da cidade. “Dizem que é uma cidade de escritores, porque o escritor precisa da introspecção, do silêncio. Não sei se isso é verdade.”

Natural do Rio de Janeiro, José Castello vive em Curitiba há 24 anos, mas continua a sentir-se carioca. Do terraço do seu apartamento, no décimo terceiro andar de um prédio no bairro do Cristo Rei, próximo do Jardim Botânico, uma das maiores atracções locais, tem uma panorâmica da cidade. Como é que um carioca se adapta à Curitiba?

“Não se adapta. É cada vez mais estranho. Digo meio de brincadeira que esse meu apartamento é um consulado do Rio de Janeiro. Fico aqui noventa por cento do meu tempo. O meu escritório é ali — aponta para uma sala ao lado —, minha biblioteca é lá em cima. Saio para caminhar no Jardim Botânico. Tenho um contacto muito pequeno com a cidade. Você chega aqui e você se sente. Eu sou amigo do Cristóvão Tezza e não o vejo há mais de dois anos e dá para ir a pé da minha casa a casa dele. Ele até me convida, mas eu curitibei mais do que ele. O Cristovão diz que a melhor maneira de viver em Curitiba é viver em Curitiba fingindo que não vive em Curitiba. Eu vivo com a sensação de que não estou em Curitiba. No máximo estou neste cantinho do Cristo Rei.”

Escritor, jornalista, crítico literário, Castello afirma que quem mostra melhor o quotidiano da cidade, embora um quotidiano passado, é Dalton Trevisan. “Ainda é uma Curitiba pequena, fechada. Hoje é maior do que Porto Alegre, mais influente, mais moderna num certo sentido. Mas também se pode entender a Curitiba de hoje lendo Dalton Trevisan, porque, apesar de toda a modernização e esse crescimento, Curitiba continua a ser introvertida, desconfiada, onde os vizinhos não se cumprimentam. Acho que isso tem a ver, em primeiro, com essa confusão de migrantes de vieram de vários lugares. Muitos fugidos de guerras, de pobreza. Então é gente que veio de certa forma das aldeias dos seus países, de lugares pequenos e trouxe uma mente interiorana e aqui ficam mais fechados. O japonês, o polaco, o italiano, cada um com a sua língua e a sua cultura.”

Castello é autor de onze livros, entre eles o romance Fantasma (2010). O cenário é Curitiba, seguindo a figura de Paulo Leminski — que nunca aparece. É ele o fantasma que Castello se propôs seguir. “Um homem, o narrador, caminha no Jardim Botânico, onde eu também caminho, e ouve alguém dizer: ‘Paulo Leminski não morreu’;. Ele passa a levantar conjecturas: ‘será que isso pode ser verdade?’, ‘o que terá acontecido com Paulo Leminski se não morreu?’, e resolve dedicar-se a procurar Paulo Leminski em Curitiba, e contrata uma detective, uma anã, a Ludovica. O romance inteiro é esse cara, a Ludovica e outras personagens andando por Curitiba — incluindo em casa de Dalton Trevisan, onde eu nunca fui, e ele é uma pessoa que nunca vi.” É uma Curtiba imaginária onde chove quase sempre. “O romance tem problemas, eu reconheço, mas pega duas coisas essenciais em Curitiba: o fechamento e a escuridão. Que o Dalton pega também. A literatura do Dalton é escura, é ensimesmada, é perversa; tem muita maldade, mas é a pequena maldade, o fuxico de vizinho. É o cara que pega Curitiba”. Alguém sempre a caminhar por Curitiba, como o vampiro sempre caminhou, e consta que continua a caminhar, apesar dos 94 anos, de boné na cabeça e olhar no chão.

Parece impossível sair do território mítico. Ele atravessa-se no olhar mais banal. Olhar um velho café na Boca Maldita, velha confraria de artistas, intelectuais junto à Rua das Flores, e indagar quando terá sido a última vez que Trevisan ou Paulo Leminski terão andado por ali. “Paulo Leminski é também um mito aqui, uma figura importante na literatura do Paraná”, salienta José Castello referindo-se ao poeta, criador de Catatau (1975), um livro de prosa experimental que põe a hipótese de Descartes ter estado no Brasil durante as invasões holandesas, com a armada de Maurício de Nassau. E, no Brasil, o filósofo francês teve algumas alucinações.

Descendente de polacos e de portugueses, Leminski nasceu em Curitiba em 1944 e teve uma produção artística fulgurante. Poeta, tradutor, crítico literário, músico, professor, estudioso da língua e da cultura japonesas, colaborou com a Bossa Nova e, no movimento Tropicalista, escreveu letras de canções, entre elas Verdura que integra o álbum Outras palavras (1981), de Caetano Veloso; esteve junto dos vanguardistas e afirmou-se entre os marginais. Morreu em 1989, vítima de uma cirrose hepática. “Muitos escritores morrem de desgosto”, diz Aramis Chain, o dono da Livraria do Chain, a mais antiga de Curitiba, aberta há cinquenta anos, ponto de contacto de Trevisan com mundo. É lá que recebe recados, encomendas, foi de lá que soube que tinha vencido o Prémio Camões. Chain, o homem de suspensórios do início deste texto, é esquivo quanto a Trevisan. “Ele anda arredio.” Andará? Com o vampiro nunca se sabe. Sabe-se que não gosta que os amigos falem dele, dêem informações sobre ele. Já deixou de falar a alguns. Filho de imigrantes alemães e persas, casado com uma chinesa, Chain prefere falar do Brasil e citar Mariliz Pereira Jorge, escritora e jornalista, colunista da Folha de São Paulo, quando afirma que o pior do Brasil é o brasileiro. “Votamos o nosso algoz e o nosso algoz, o nosso senhor de fazenda, ensina o povo a cantar hinos de liberdade. No Brasil os senhores ensinam os escravos a cantar hinos de liberdade.”

Sobe as escadas que levam ao primeiro piso. Está repleto de estantes, como o debaixo, com recortes de muitos jornais nas paredes com notícias de corrupção e destaque para os actuais protagonistas da política no Brasil. “Interesso-me por Curitiba, pelo Paraná, pelo Brasil e pelo mundo”, justifica, antes de chegar onde quer: a mesa de Leminski. Fica atrás numa cozinha aberta para a livraria, paredes azuis como céus de inverno de Curitiba, uma janela de vidro fosco que deixa entrar a luz e ilumina a tolha branca de quadrados vermelhos sob uma mesa redonda. É como um cenário intocado, um altar, mais um lugar mítico. “Leminski vinha muito aqui, ele morou perto nos últimos anos de vida. Sentava ali pela manhã, ficava lendo e depois ia embora.”

Não escrevia ali. “Só em casa”, afirma Alice Ruiz, poeta, viúva de Leminski, curitibana como ele, a viver em São Paulo. “Não aguentava ser viúva de monumento”, explica. “Paulo Leminski é monumento em Curitiba, a sua imagem, os lugares onde esteve são parte desse monumento”, continua Ruiz, sem, no entanto, fazer uma crítica à cidade. “É preciso conhecer. Saber que é fria, que há muito vento, que as pessoas se encontram em casa umas das outras ou nos bares; que é boémia.” Paulo vivia a cidade dessa maneira. Escreveu-a em muitos poemas, notando-lhe os males, impiedoso, refém dela, habitante apaixonado e observador atento “(quantas Curitibas cabem /numa só Curitiba?) // Cidades pequenas, / como dói esse silêncio, / cantilenas, ladainhas, / tudo aquilo que nem penso, / esse excesso / que me faz ver todo o senso, / imprecisa premissa, / definitiva preguiça / com que sobe, indeciso, / o mais ou menos do incenso./ Vila de Nossa Senhora / da Luz dos Pinhais)”.

“Sim, Leminski morreu de desgosto”, diz Chain. “Há quem não aguente. Lima Barreto não aguentou. Morreu num hospício. E lembre todos os que morreram cedo no início do século XX e que estão morrendo, ou se deprimem.”

Leminski, o provocador, Trevisan o arredio, Tezza, o herdeiro literário de uma cidade que não se deixa apanhar, Castello, o que se curitizou para continuar lá, Ruiz, a que não suportou que transformassem a sua vida num monumento e foi embora. Em todos, Curitiba se manifesta sem se revelar, cidade extra-Brasil, extra-terrestre, onde os vampiros se passeiam pelos bosques domesticados do Jardim Botânico, pelas esquinas geladas pelo vento Norte, nos subterrâneos da boémia. “Curitiba sem pinheiro ou céu azul, pelo que vosmecê é — província, cárcere, lar —, esta Curitiba, e não a outra para inglês ver, com amor eu viajo, viajo, viajo.”

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