Era uma noite de julho de 1989, eu estava de férias em Búzios e resolvi dar mais uma chance a Viva o povo brasileiro, que já tinha tentado ler umas quatro ou cinco vezes, sem sucesso. Eu tinha 17 anos e aquelas páginas de linguagem castiça e barroquíssima me pareciam vindas não de outro planeta, e, sim, de outra galáxia (literária). Não tinham nada a ver com Rubem Fonseca, menos ainda com Luiz Fernando Veríssimo, muito menos ainda com Marcelo Rubens Paiva, para citar apenas três dos escritores brasileiros que eu lia com prazer naquela época. E Jorge Amado? É verdade que ambos os autores eram baianos e suas histórias se passavam quase sempre na Bahia mas, fora isso, eu não conseguia ver muitos pontos de contato entre o realismo quase cinematográfico de Capitães da areia e o catatau do Ubaldo. Eu não tinha medo de catataus; já tinha devorado algumas volumosas sagas históricas de James Clavell e James Michener e cheguei a pensar que o livro diante de mim fosse algo parecido, afinal a frase promocional na capa (que, salvo engano, deixou de figurar nas edições mais recentes) dizia, pomposamente, que se tratava da “saga de um povo em busca de sua afirmação”. Não, também não era bem assim.
Então o que era? Descobrir isso era uma das razões que me levavam a continuar insistindo com o livro. Mas havia outras: Viva o povo brasileiro tinha sido lançado, cinco anos antes, em uma noite de autógrafos com vários autores da mesma editora. Um desses autores era meu pai, que tinha publicado um livro infantil. Esse vínculo talvez tenha feito com que, em vez de me intimidar com aquela prosa gongórica, eu tenha me sentido atraído e fascinado por ela, como aquele parente esquisito por quem sentimos afeto apesar de não termos nada em comum.
“De um colega que, insensatamente, bebe uísque em vez de vinho”. Essa é a dedicatória que João Ubaldo Ribeiro fez para meu pai. Só fui entender o que estava por trás da frase anos depois, já adulto, quando morava no Leblon. Cruzei com Ubaldo muitas vezes, de bermuda e chinelos, quase sempre indo ou voltando de seus encontros com “Odete”, como ele chamava carinhosamente o uísque Old Eight. Uma vez não resisti e parei-o na rua para agradecer a ele por ter escrito Viva o povo brasileiro. Ele ficou sem graça, deu um sorriso triste, tristíssimo, e seguiu seu caminho sem dizer uma palavra. Foi a única vez em que falei com ele.
Prazer indescritível, euforia, aumento dos batimentos cardíacos, elevação do estado de alerta, insônia, alucinações, dependência; e, quando não resta mais nada a consumir, depressão e desespero. Nunca fumei crack, mas naquela noite em Búzios, depois que consegui finalmente vencer as primeiras páginas, caí num vórtice que, na minha imaginação, é a coisa mais parecida com o crack que já experimentei. Lembro o espanto de minha mãe ao acordar às sete da manhã e me encontrar, febril, com os olhos injetados, na mesma posição em que estava desde as sete da noite, deitado no sofá da sala sem conseguir largar o catatau mágico. Para algumas pessoas, talvez isso tudo soe piegas. Caguei. Foi exatamente assim, como descrevi.
O que me enfeitiçou tanto em Viva o povo brasileiro? Em primeiro lugar, a presença de personagens fortes e muito bem-caracterizados, que praticamente se materializavam na minha frente; não estou falando só dos protagonistas, mas também da imensa galeria de coadjuvantes e figurantes. Eis aqui um deles, que aparece apenas em um episódio, que dura três ou quatro páginas:
Horácio Bonfim, escrevente, mulato de meia-idade, dentuço e curvado, subserviente e serviçal, porém sempre com algo de insolente nas maneiras – algo que não se podia apontar com clareza, mas fazia com que ninguém se sentisse à vontade em sua presença.
Horácio não é nem mesmo coadjuvante desse curto episódio, ele aparece apenas de relance, e mesmo assim ele ficou gravado em minha memória e de lá nunca saiu. Esse é um exemplo claro de que, para um grande escritor, não é preciso muito para dar vida a um personagem. Às vezes, bastam dois ou três elementos, desde que sejam escolhidos a dedo para que o contraste entre eles provoque uma espécie de curto-circuito que enganche o personagem na cabeça do leitor. No caso de Horácio, esse curto-circuito é provocado pela contradição entre uma fachada de submissão e o atrevimento dissimulado em seu comportamento:
Horácio falou com uma ironia insuportável na voz e Amleto pensou em dizer-lhe qualquer coisa, mas achou que na exclamação havia ainda suficiente ambiguidade para aconselhar que não passasse recibo, não desse ousadia.
E o que dizer da linguagem? Minha primeira impressão, de que se tratava de um texto retorcido e rebuscado, logo deu lugar ao gozo de perceber que o gigantesco arsenal de recursos linguísticos de Ubaldo trabalha em perfeita harmonia com os personagens e com a narrativa, até mesmo quando a linguagem não aguenta a tentação e se enrosca em si mesma. O virtuosismo do vocabulário e da sintaxe; a variedade de registros que vão do português setecentista ao linguajar dos caboclos, encantados e orixás; as numerosas paródias do discurso eclesiástico, da retórica nacionalista, da poesia romântica ou da historiografia oficial, tudo isso está a serviço do leitor, e não da vaidade do autor. Vejamos a entrada em cena de Leléu, o mais carismático dos protagonistas:
Quem é aquele que lá vem lá longe, todo serelepe, lépido e fagueiro? Ora se não é Nego Leléu muito bem fatiotado, chapeirão de couro mole, burjaca toda catita, pantalonas mais que galhardas, gravata tipo plastrão, alcobaça repolhada, camisa de batista fino, ceroulas do melhor algodãozinho, um par de chapins lustrosos pendurados nos dedos, embotadeiras com ligas de cadarço jogadas no ombro – e as piores intenções!
O que vemos aqui é a exuberância da linguagem mimetizar, de certa forma, a exuberância de Leléu, enquanto a riqueza vocabular serve tanto para evocar visualmente o personagem como para lhe dar verossimilhança histórica. Poucas páginas adiante, o tom muda completamente, na famosa cena do acasalamento das baleias:
As baleias, das grandes e das pequenas, de qualquer das muitas famílias e raças que todo ano aqui passeiam e são caçadas, não casam como os outros peixes. Os outros peixes, pelo pouco que se vê de seu amor, numa boca de rio parada, numa loca, num viveiro, numa poça dos recifes, se espadanam pela água, muitos dançam, uns poucos arrastam as fêmeas para os cantos, mas não se tocam, não se conhecem, têm filhos como grãos de areia, que às vezes comem com indiferença. Mas não o peixe baleia, que quando se enamora primeiro canta e assovia, subindo e descendo as ondas como se quisesse encapelar o mar sozinho.
A linguagem é agora bem mais sóbria, quase didática, pois o propósito já é outro: fascinar o leitor com a digressão sobre o comportamento dos animais e, ao mesmo tempo, acentuar o contraste com os acontecimentos trágicos que serão narrados mais adiante, e assim pegar o leitor desprevenido, no contrapé. Mais uma vez, o virtuosismo técnico se manifesta não só nos aspectos formais, mas também na capacidade de conquistar a atenção de quem lê.
Em suma, Viva o povo brasileiro é um livro que não esconde sua tremenda ambição artística e, ao mesmo tempo, deseja ardentemente, veementemente, ser lido. Abro um parêntese: que falta nos fazem livros assim. Prefiro mil vezes ler um calhamaço ambicioso que falha espetacularmente do que ler mais um romance “bem escrito”. Não por acaso, a ambição é um traço em comum entre alguns dos melhores livros brasileiros das últimas décadas. Pornopopéia, de Reinaldo Moraes, é um verdadeiro épico junky, um delírio devasso que parece não se conter nas folhas de papel em que se vê aprisionado; O livro dos mandarins, de Ricardo Lísias, é um tour de force sobre o mundo corporativo globalizado, que demandou anos de pesquisas e muita, muita inventividade; O drible, de Sérgio Rodrigues, quer ser, nada mais nada menos, do que o grande romance brasileiro sobre futebol (e consegue). Fecha parêntese.
Pensando bem, reabro o parêntese, porque acabo de me dar conta de que os três livros que mencionei têm outro traço em comum, que não só está presente em Viva o povo brasileiro, como é uma de suas principais armas de sedução: o humor. Além de tudo, é um livro engraçadíssimo. Essa combinação entre ambição literária e veia cômica também era uma surpresa para mim. Eu não sabia que era possível ser engraçado com tanta erudição, com tanto engenho, e isso foi decisivo para moldar minha visão da literatura, tanto como leitor como quanto escritor. Anos depois, quando sentei a bunda para tentar ser um escritor “sério”, logo senti um bafo de uísque atrás de mim. Era o egum do Ubaldo, avacalhando minhas pretensões. Ainda bem.
Voltando àquela noite em Búzios, passo a outras razões pelas quais Viva o povo brasileiro é o livro mais importante da minha vida. Em 1984, ano de sua publicação, o Brasil ainda era uma ditadura e eu ainda tinha aulas de Educação Moral e Cívica no colégio. Lembro bem os livros didáticos com desenhos toscos dos símbolos nacionais e de heróis da pátria como Tiradentes e o Marechal Deodoro da Fonseca. Há quem sinta saudade dessa época, inclusive gente que nasceu muito depois dela e não sabe bem do que está falando, mas, para mim, que me lembro bem de como eram aqueles tempos, não há qualquer razão para ter saudade, e o simples fato de precisar escrever isso já é suficiente para me convencer de que o Brasil fracassou numa tarefa essencial para qualquer nação: acertar as contas com seu próprio passado.
O passado que aprendi na escola, durante e logo após a ditadura, era muito diferente do passado de Viva o povo brasileiro. O passado que aprendi na escola era feito de abstrações como o “ciclo da cana-de-açúcar”, de eventos cuja data eu tinha que decorar porque caía na prova, e de alguns personagens míticos e bidimensionais, que pareciam pertencer a uma raça bem distante dos seres de carne e osso que eu conhecia. Além disso, e mais importante, não parecia haver muitos vínculos entre esse passado e o presente que eu vivia. Nessa época, eu tinha duas mães: além de minha mãe biológica, havia Mundica, uma senhora negra analfabeta, que tinha cuidado de minha mãe quando ela era criança e agora cuidava de seus filhos. No passado que aprendi na escola, a escravidão era tratada como algo lamentável, mas felizmente já superado há muito tempo, ufa. Que esse período tão incômodo da história do Brasil pudesse afetar profundamente a realidade diária de todos os brasileiros, inclusive eu, era algo longe de ser óbvio. Que havia um vínculo histórico evidente entre Mundica e os escravos domésticos que trabalhavam para os meus antepassados no século XIX, é algo que só fui perceber lendo Viva o povo brasileiro.
O passado inventado por Ubaldo mudou radicalmente minha visão sobre a história do Brasil e também sobre meu próprio lugar nessa história; não por querer impor uma versão diferente do passado que eu estudava no colégio, mas por esculhambar qualquer pretensão de estabelecer uma versão unívoca e “oficial” para a história do Brasil. Parafraseando a metamorfose operada no personagem Patrício Macário, o militar filho da elite que se “converte” à causa do povo, eu me dava conta de quão parcial e limitada era a minha perspectiva do país e percebia que, “ao contrário do que pensava, tudo pode ser visto de formas diversas, muito diversas, daquela que se pensa ser a única, a correta”. Ou, como diz outro personagem, o cego Faustino:
Toda história é falsa ou meio falsa e cada geração que chega resolve o que aconteceu antes dela e assim a História dos livros é tão inventada quanto a dos jornais, onde se lê cada peta de arrepiar os cabelos. Poucos livros devem ser confiados, assim como poucas pessoas, é a mesma coisa. Além disso, continuou o cego, a História feita por papéis deixa passar tudo aquilo que não se botou no papel e só se bota no papel o que interessa. Por conseguinte, a maior parte da História se oculta na consciência dos homens e por isso a maior parte da História nunca ninguém vai saber.
Mas o que, exatamente, está de fora da “História feita por papéis”? Para começar, a vida e as vicissitudes de gente como Mundica, que tinha uma semelhança assustadora com Dadinha, a matriarca e mãe de santo cuja fala dá vida a uma das partes mais saborosas do livro. No vasto painel histórico criado por Ubaldo, numerosos personagens pobres, iletrados e subalternos como Dadinha (quase escrevi “Mundica”) têm uma existência tão intrigante e complexa quanto a ficção, e também a história, são capazes de conceber. Foi nada menos do que uma epifania vislumbrar que o Brasil foi e é construído não só pelos ricos e poderosos, mas também pelo “resto”, e que esse “resto” cheio de Mundicas e Dadinhas produziu e produz universos simbólicos que eu não seria capaz de entender totalmente nem que vivesse várias vidas. Anos depois, foi o fascínio por esses universos simbólicos que me levou a ser antropólogo.
“Todos nós, brasileiros, somos carne da carne daqueles pretos e índios supliciados. Todos nós brasileiros somos, por igual, a mão possessa que os supliciou. A doçura mais terna e a crueldade mais atroz aqui se conjugaram para fazer de nós a gente sentida e sofrida que somos e a gente insensível e brutal, que também somos.” Essas palavras não são de Viva o povo brasileiro, e sim de O povo brasileiro, obra de Darcy Ribeiro que, por várias razões, pode ser considerada uma espécie de contraparte não ficcional do livro de Ubaldo. Quando li essas palavras de Darcy, eu sabia exatamente do que ele estava falando, pois estavam nítidas em minha memória cenas como a da primeira encarnação da alminha do Alferes Brandão Galvão: “Nasceu índia fêmea por volta da chegada dos primeiros brancos, havendo sido estuprada e morta por 12 deles antes dos 12 anos”.
Mas há mais: no passado inventado por Ubaldo, as elites têm muito tempo e espaço para expor seus pontos de vista sobre o mundo, pontos de vista que também tinham uma semelhança assustadora com o que eu via, ouvia e lia na década de 1980. Eu me assombrava, em particular, com o teor dos discursos racistas e autodepreciativos que ridicularizavam o Brasil e exaltavam os países “civilizados”, pois podia reconhecê-los facilmente à minha volta. Eu sentia arrepios de familiaridade ao ler divagações como as do Cônego Visitador D. Francisco Manoel de Araújo Marques, que louvava as “civilizações avançadas, onde o espírito do homem não é pervertido por uma natureza luxuriosa e corruptora, onde, enfim, é possível existir o que aqui jamais será, ou seja, uma cultura e vida dignas de homens superiores”.
Naquela época, quando víamos um cagalhão no meio da rua, alertávamos os amigos dizendo, jocosamente: “Cuidado, olha que você vai pisar no Brasil”. Lembro-me de uma camiseta com a bandeira do Brasil que, em lugar de “ordem e progresso”, tinha a seguinte inscrição: “Ê povinho bunda!”. Expressões como “melhorar a raça”, que aparecem no livro, não eram incomuns naquela época, e ninguém se sentia incomodado de usá-las em público; também não eram incomuns as piadas racistas. Na minha sala no colégio, havia um único aluno negro e me lembro uma vez da professora de religião dizendo categoricamente que ele não era negro, apenas moreninho, e para “provar” isso colocou-o lado a lado com um colega surfista (e, portanto, bronzeado) dizendo “olha só, a cor da pele dos dois é praticamente a mesma”. Nenhum dos meus amigos ou conhecidos havia visitado a Amazônia, o Maranhão ou o Pantanal, muito menos pisado em uma favela carioca, mas praticamente todos já tinham ido aos Estados Unidos ou à Europa e voltavam de lá carregados de muamba, e muitas vezes revirando os olhos de encanto por aqueles países “onde tudo funciona” e de desdém por esta terra “que nunca vai dar certo”. Enfim, poderia citar outros exemplos, mas acho que já ficou claro que a vergonha e a negação das próprias origens, a vontade de emular os europeus e os norte-americanos, o desprezo pelo povão, tudo isso que sai da boca dos personagens ricos e poderosos de Viva o povo brasileiro, tudo isso era dolorosamente familiar para mim.
Semanas depois daquela noite em Búzios, saí do Brasil pela primeira vez na vida, para passar um ano nos Estados Unidos como estudante de intercâmbio. O longo processo de digestão do livro começou lá, e afetou profundamente minha experiência de viver fora e minha percepção do Brasil visto à distância. Por mais admiração que eu tivesse pela sociedade, pela cultura e pelas instituições norte-americanas, o livro de Ubaldo sempre estava lá para evitar que essa admiração se transformasse em deslumbramento servil, e para me lembrar que, sem ufanismos babacas, o lugar de onde eu vim era também digno de admiração. Mesmo naquela época. Sim, mesmo com inflação galopante, com a eleição do Collor e com a campanha pífia da seleção na Copa do Mundo de 1990. Afinal, naquela mesma época tínhamos deixado para trás 21 anos de ditadura militar, em todas as festinhas que eu ia nos Estados Unidos só se ouvia e dançava lambada, e ainda por cima o Brasil produzia livros como Viva o povo brasileiro.
Lendo o texto de Rodrigo Lacerda publicado nesta edição, e descobrindo com perplexidade as similaridades na forma como Ubaldo nos impactou (incluindo experiências muito parecidas como estudantes no exterior), não pude deixar de pensar que o amor que ambos sentimos pelo livro também tem uma marca de geração. Vou me arriscar a dizer que, para a nossa geração, que chegou à adolescência nos últimos anos da ditadura, o Brasil era um país cheio de problemas, mas o futuro parecia bem mais luminoso do que o passado e o presente; o processo era lento e sujeito a muitas decepções (como a derrota da emenda das Diretas Já, o fracasso do Plano Cruzado, o confisco do Collor...), mas sua direção apontava claramente para dias melhores. Nesse contexto, Viva o povo brasileiro era um livro mais que oportuno, pois nos fazia entender que, entre as várias tarefas que o Brasil tinha pela frente para chegar aos tais dias melhores, estavam a aceitação de si mesmo e um ajuste de contas com seu passado.
Em 1998, o cineasta André Luiz Oliveira comprou os direitos de filmagem do livro. Os esforços para levar às telas a antiepopeia de Ubaldo consumiram oito anos de trabalho do diretor e de um exército de produtores, atores e técnicos, mas o filme nunca foi terminado. Para tentar entender como e por que isso aconteceu, o cineasta fez outro filme: O outro lado da memória, documentário que se debruça sobre a importância de Viva o povo brasileiro para o país e inclui imagens das pesquisas de locação, testes de elenco, storyboards, materiais de pesquisa e algumas cenas filmadas. Lançado em 2018, O outro lado da memória é um filme belo e melancólico, em que o projeto original interrompido acaba se transformando em uma metáfora da incompletude do próprio projeto nacional brasileiro.
Em uma das cenas do filme, o analista junguiano Roberto Gambini tenta entender as razões desse insucesso. Estou certo de que Ubaldo estaria de acordo com suas palavras:
Tentar entender o que nós somos, essa comunidade nossa tão antiga, é difícil por causa dos não ditos, dos não visíveis, dos não documentados. Você ouve eco, mas você não sabe eco do quê... (...) As circunstâncias do nascimento da nossa alma coletiva, quinhentos e poucos anos atrás, são circunstâncias dramáticas, porque houve criação e houve destruição, e nós não nos damos conta da destruição. E, enquanto a gente não se der conta disso, a gente não fará uma reparação e a gente não consegue pegar um fio da meada que nos leve a um “tornar-se”. (...) Isso é o meu ponto de partida pra entender o Brasil, pra entender por que nós não podemos ter utopias. Claro que podemos, mas é uma utopia que brota de onde? Pra ser uma utopia brasileira, ela tem que partir de uma matriz brasileira, ela não pode se basear em matrizes externas a nós. E enquanto a gente não se voltar pras raízes, não dá pra fazer utopia. O nosso futuro, ele tá preso no passado.
Sim, nosso futuro está preso no passado. Quanto tempo levaremos para aprender isso? Não sei. Só sei que, como diz João Ubaldo Ribeiro, “as almas não aprendem nada, mas sonham desvairadamente”.
>> Gustavo Pacheco, escritor, é autor de Alguns humanos