Botao Vermelho 1 Flavio Pessoa marco.21

 

 

 

Você lê aqui o sétimo conto da série Botão Vermelho, uma parceria do Pernambuco com o Instituto Serrapilheira que une literatura e ciência para pensar novos mundos. Este conto é o primeiro da nova temporada da série. Clique aqui e acesse o editorial da série, escrito pela curadora e editora Carol Almeida, e os seis textos publicados antes. 

No conto abaixo, assinado pelo escritor Cristhiano Aguiar, palavras em vermelho indicam informações científicas. Clique em cima delas para conhecer mais dados.

***


— Sim, pode vir pegar: o corpo da sua avó acordou — disse, pelo telefone, o funcionário do IML.

Os protocolos sanitários impediam os parentes de esperar no próprio IML. Olga precisava ligar a cada duas horas e torcer pela confirmação. Sua mãe e seus tios e tias decidiram não ir. Todo mundo tinha algum caso de diabetes, problema respiratório, operação de retirada de câncer, hipertensão, mas o motivo principal, sem dúvida, era ela, tão amada pelas netas e tão distante dos seus próprios filhos.

— Tu é a neta primogênita. Tu vai pegar ela — mainha lhe falou, os olhos avermelhados. A ordem foi recebida com contrariedade. Carregar a família assim nas costas… Ensaiou uma briga, porém estava cansada. Também teve pena da mãe. Olga até se sentiu poderosa: heroica, adulta, prestigiada.

No IML, duas aglomerações a irritaram de imediato: as da imprensa e dos militares. Os dois grupos estavam plantados na frente do IML. Havia vans, carros, sirenes. Um helicóptero circundava a região. Entre jornalistas e soldados, como Moisés dividindo o Mar Vermelho, três homens, três homens cinzentos e exaustos, a esperavam. Usavam jalecos do SUS. Só um deles a cumprimentou, à distância.

— A senhorita é a neta de Maria Lutz?

— Sim.

O médico — depois descobriu se tratar de um médico — a olhava com veneração e empolgação. Ele lhe explicou alguns termos e protocolos, falou da coleta obrigatória de sangue da família; falou de DNA, de segurança nacional, falou de “momentos extraordinários”. Era um progresso: sua avó tinha sido promovida, em poucos minutos, de uma bagagem a ser retirada, de um estorvo para os funcionários do IML, de um Big Mac Zumbi, a Maria Lutz, O Milagre. Finalmente, após o médico terminar seu monólogo, Olga notou olhares desconfiados, francamente hostis, dos militares em sua direção.

***

Dentro do IML, Olga foi trancada com os três médicos e meia dúzia de militares em uma pequena sala abafada, mofada, cheia de cadeiras e mesas antigas. O médico perguntou sua profissão. Respondeu: jornalista. Todos os homens — Olga era a única mulher naquela sala — se entreolharam.

Onde trabalho? Faço assessoria de imprensa e cuido de mídias digitais — respondeu. — Tenho uma pequena empresa — mentiu.

“Empresa” os deixou mais relaxados. O médico pigarreou e falou de respostas imunes à Covid-19. Falou de processos inflamatórios, inflamassomas, falou de células NK, macrófagos, linfócitos T e citocinas.

— A sua avó faleceu provavelmente em decorrência de uma tempestade de citocinas, ele continuou, uma reação imunológica exagerada ao patógeno, ou seja, ao vírus da Covid, no organismo dela. As citocinas são essas moléculas que sinalizam, para várias das nossas células, uma resposta imunológica para o patógeno. No entanto, às vezes a resposta é exagerada e o corpo, digamos assim, “recruta” — o médico pareceu apreciar a sua própria metáfora — um batalhão excessivo de células de defesa. Células descontroladas — disse, buscando apoio nos olhares dos seus colegas —, gerando ciclos de hiperinflamação!

Enquanto ele falava, Olga se assustava com a visão de um corpo inimigo de si mesmo, de uma revolução histérica de nossas células destruindo tudo que encontrassem pelo meio do caminho. Cortar o Mal na carne, literalmente. Uma dança do caos, microcósmica, encerrada somente quando o último sopro apagasse a luz.

— Vovó tá sozinha?

— Hein?

— Vovó. Ela tá sozinha?

Os homens viraram citocinas agitadas. Murmuraram. Um deles — fardado — pediu licença e saiu da sala.

— A senhorita sabe como funciona o nosso sistema imunológico?

A explicação continuou e Olga só reteve os termos “imunidade inata” e “sistema imunitário adaptativo”; foi o “senhorita” que chamou atenção, porque de repente Olga percebeu a idade dele. O cansaço daquele homem, sua ansiedade… Ao seu modo, ele tentava agradar, demonstrar competência. Também ele era um pai para filhas e filhos? Também era um vovô para alguma netinha? Ele se imaginava vivendo algo semelhante ao que acontecia com vovó, dormir a noite profunda e de repente retornar? Olga apreciava os solitários, praticamente os colecionava.

— …e aí a sua avó, a dona Maria, deu um salto — ele também gostou de ter encontrado essa palavra, até fez uma pausa dramática. — Não sabemos explicar ainda, mas já conseguimos, logo após o paciente vir a óbito, identificar marcas que podem levar a esse novo, digamos, “quadro clínico”. Supomos que haja uma correlação de fatores… Genéticos, com certeza, bem como de mutação, é quase certo que se trata de uma nova cepa, agressiva, porém, porém… uma nova cepa do vírus. E talvez, essa é uma hipótese minha, haja também uma correlação com a memória celular do corpo por ter sido infectado, no passado, por outros HCoVs… O salto acontece quando o sistema imunológico contribui para o reinício da atividade vital do corpo, fazendo com que haja uma inesperada cadeia, parcial, de processos de regeneração celular. E falei “vir a óbito”, mas mesmo nisso não há consenso, não sabemos se os pacientes faleceram de fato, nem como, supondo a hipótese do falecimento ser correta, o corpo se reativa…

— Em quanto tempo o corpo “reativa”?

— Como…? Ah, minutos ou no máximo em poucas horas depois.

— Então vovó já foi trazida do hospital para cá, pra esse lugar, “reativada”?

Ele não respondeu. Tentou segurar as mãos de Olga. Ela o repeliu.

— O que está acontecendo com pessoas como a sua avó, esse salto, é um milagre, então…

— Doutor?

— Pois não.

— Vovó tá viva? Ela ressuscitou? Foi isso? O que aconteceu com ela?

Ele procurava as melhores palavras. Não só precisas, mas as delicadas. Olga quase lhe pediu desculpas, porque apreciava o seu esforço em se fazer entender.

Ao mesmo tempo, cada minuto em sua presença aumentava o asco. Não só a ele, mas aos seus companheiros, à sala, ao IML, à… à imaginação do que seria o corpo — mas ela não era mais um corpo — da sua avó. Tudo que Olga queria era descoisificar a avó, largar as tais citocinas para trás. Começou a chorar.

— Estamos, por precaução, usando o termo “pós-vida”. Mas sim, sua avó é mais uma lázaro, sem dúvidas.

***

O barulho do interruptor pressionado repetidas vezes a incomodou.

O médico e seus companheiros tinham conduzido Olga, com solenidade, a uma sala vazia e habitada. A pouca iluminação vinha tanto de uma única lâmpada acesa no teto — as outras se recusavam a despertar —, quanto da luz externa dos postes, que atravessava o vidro opaco das janelas, quase coladas ao teto. Olga notou várias camas-mesas metálicas, com seus chuveirinhos e suportes para os crânios. Registrou, também, o que supôs serem geladeiras. O cheiro do local era hospitalar. Mas com um desvio na assepsia — um miasma adocicado, levemente podre.

Os mortos, deitados em cima das camas metálicas, esperavam pelos vivos. Capas os cobriam.

A avó também esperava. Envolvida por um plástico grosso, que cobria sua cabeça e descia até o chão como um véu, ela se sentava na mesa. A luz do teto, próxima, pincelava uma aura; manchas ameboides, luminosas, se refletiam sobre o plástico retorcido.

Olga quase foi empurrada pelos homens. Eles se acotovelavam na entrada da sala e nada os tiraria dali. A neta atravessou a sala escura sozinha, ouvindo seus próprios passos ecoarem; atravessou com medo e alegria. Que se danem os leucócitos, isso tudo; a vida, quando existe vida, é sempre um final feliz, aí está vovó pra não me fazer mentir!

— Vovó, vovó…?

A neta lembrou das brincadeiras, mas também dos sermões. Sua avó era rigorosa e tinha certezas firmes sobre o bem e o mal, o justo e o injusto. Tinha feito uma brilhante carreira como juíza federal. Dona Maria Lutz seguira a carreira do pai, também juiz. O retrato dele, pintado a óleo, exibido há décadas na sala da casa da avó, apavorava gerações. “O seu coração, menina,” a sua avó lhe dizia o tempo todo, “sempre fala mais forte. Você é muito coração!” Olga tropeçou em uma das camas — uma das poucas vazias — e derrubou algo (o som foi estridente, estilhaçante, e demorou a se dissipar). Alguns homens à porta soltaram gritinhos de susto. Maria Lutz virou o rosto; o plástico fez barulho enquanto se dobrava com o movimento.

Olga sentiu horror, tontura. Enfiou um punho fechado na boca, não queria a vergonha do grito. A face. Como eu vou dar conta dessa coisa? Maria Lutz vivia, era inegável.

E também estava morta?

***

Ao abrir a porta, Olga sentiu o forte cheiro das flores.

Pelos janelões da sala ampla, chegavam o pisca-pisca das viaturas, dos veículos da imprensa e o burburinho de um monte de gente, todos aglomerados, com máscara ou sem, na frente do edifício. Ao fundo das luzes e da barulheira, o ritmo da praia. As ondas lá fora estavam agitadas, barulhentas; o vento sacudia as janelas. O dia amanhecia, já. Coroas de flores, do velório cancelado, dividiam o espaço da sala com a família: “Saudades” “Amor eterno” “Meus sentimentos”. Cheiro de comida: a mãe e as tias tinham preparado o prato favorito de vovó, filé à parmegiana com macarrão, mas ela não o comeria. Ela nunca mais comeria nada, assim como as outras e outros lázaros.

Maria Lutz desfilou pela sala, os passos de bebê, usando uma bata de hospital. Filhos, filhas, netas e as três bisnetinhas a olhavam sem saber como reagir, como entender o que sentiam. A lázaro se movia por todos os lados, mas sem se deter num móvel ou pessoa em específico. Olga arrastou uma cadeira para que ela se sentasse no centro da sala. Fez questão de não tocar na avó. Sentada, vovó nada disse. Ninguém tinha coragem de iniciar o primeiro contato. Olga se sentou mais afastada de todo mundo, em uma das mesas. Massageava o próprio rosto, exausta.

— Mas vovó não tava morta, mainha?? — uma das bisnetas perguntou.

“Um milagre”, “Jesus Amado” — o coro de vozes passou um tempo falando coisas assim. E aí começou a primeira briga. Todo mundo concordava que precisavam agradecer a Deus. Mas agradecer como? Aquele era um milagre católico? Protestante? Espírita? Havia as três religiões na família. O bate-boca foi intenso (os crentes da família falavam o tempo todo em evitar o Demônio) e Olga se controlava para não gritar com todo mundo. Não suportava encarar a avó; mesmo assim, era incapaz de tirar os olhos dela.

— Vão querer que eu more com isso — pensou. — “Você não é casada, não tem filhos, fica pra lá e pra cá na vida. Toma o pacote agora: acho é pouco!”

Quando os ânimos se acalmaram, a mãe de Olga sugeriu a diplomacia do Pai Nosso. Repetiram a prece duas vezes e de mãos dadas. Vovó não pareceu se importar. Em seguida, alegria, abertura de champagnes, brindes. Viva, ela estava viva. A criançada corria. Algumas pessoas falavam, pelo celular, com a imprensa. Milagre, benção. Na TV, as hipóteses científicas. Mas também hipóteses espirituais, ecos do apocalipse. Os filhos venciam a repulsa, beijavam e abraçavam a mãe, o que dificilmente faziam quando ela vivia. Não tinham esse hábito de tocá-la, de declarar, para ela e uns para os outros, o que sentiam. Vovó não gostava, vovó não se permitia.

— E esse apartamento?

Talvez devêssemos pensar em algum lugar, um dos tios sugeriu, algo adequado à condição. Lugar? Como assim? Mas todo mundo sabia do que se tratava: famílias deixavam os seus lázaros em abrigos construídos às pressas pelo governo, a maioria deles perto de cemitérios. Algumas famílias os abandonavam na rua, ou tentavam vendê-los. Desovavam os ressuscitados por diversos motivos, em especial porque não tinham condições de mantê-los em casa. Lázaros não comiam, mas precisavam se hidratar, precisavam de vitaminas, sais minerais, de cremes para suas peles mornas e de colírios para os olhos murchos. Precisavam ser acompanhados, vigiados, conduzidos. O apartamento era muito bom, bem valorizado, móveis bonitos e caros. Uma vista linda da praia. Os tios e tias falavam de dívidas, de sonhos. Alguns tinham sido demitidos na pandemia e queriam montar seu próprio negócio. Ter patrão? Nunca mais! Os empreendedores da família lembravam que havia dinheiro guardado, dinheiro que ela sempre lhes recusou. Ela acumulava e acumulava, economizando cada centavo, exceto para a educação e os mimos das netinhas e bisnetas. “Guardo mágoas”, Olga ouviu. “Quero liberdade”, outra pessoa bufou. Cotovelo na mesa,

Olga ouvia tudo com a cabeça apoiada em uma das mãos. Sabia, por amigos jornalistas, de histórias terríveis sobre os abrigos governamentais.

— Pois eu digo que mainha fica aqui! Na casa dela! — Disse a mãe de Olga.

A neta se perguntava se talvez não fosse melhor assim. Como viveriam na presença daquele silêncio e dos olhos de peixe morto? Quando sua avó estava internada, sem poder receber visitas, e assim que soube do falecimento, Olga lamentou quantos assuntos ainda faltavam para conversar com ela. As duas eram as maiores leitoras da família e viviam compartilhando suas impressões sobre romances, poemas. Olga gostava de ouvir as histórias do passado e ria com os julgamentos severos de Maria Lutz sobre a “pu-si-la-ni-mi-da-de” de seus filhos. A esperança de voltarem a conversar tinha durado pouco. Sua avó se transformara num diamante sombrio. Cerrado, denso, opaco. Para sempre cravado nos seus dias.

— O problema é que a gente não sabe quando mainha, quando ela…

A sala silenciou. Ninguém quis completar a frase. A palavra que faltava ser dita tinha ganhado um novo medo.

Daí, uma risada foi ouvida. Os adultos ficaram arrepiados. Ela, a retornada, a pós-viva, a lázaro, gargalhava. Um som gutural, áspero. As bisnetas, de saco cheio das brigas, estavam falando animadas com vovó e a maquiando.

— Olha vovó, olha como a senhora tá bonita!

***

Botao Vermelho 2 Flavio Pessoa marco.21

 

Na garagem do prédio, demorou para ligar o carro. Passou um bom tempo apertando o volante. Imaginava os seus parentes ainda discutindo, ou tentando conversar com sua avó. Tentariam fazer perguntas a ela; apontariam o dedo; lavariam a roupa suja, jogando na cara da não-morta verdades, aquelas mesmas que eles nunca tiveram coragem de dizer. Olga queria chamar todo mundo, até a sua mãe, de “hipócritas”; “Mas e quanto a mim? Eu, que tenho nojo dela?”

No rádio, as pautas giravam principalmente sobre os lázaros. Uma reportagem abordava a polêmica dos remédios que, sem comprovação científica, supostamente preveniam as “ressurreições da Covid-19”.

— Eu quero morrer e pronto — disse um entrevistado. — Tá louco, ficar na sala de espera do Céu?

Olga lembrou das clínicas que prometiam desreviver os lázaros. Existiam grupos, em especial religiosos, que organizavam protestos contra essas clínicas. A família tinha direito a escolher abrir mão da pós-vida? O que os lázaros escolheriam, se pudessem? Por outro lado, os abrigos ficavam mais lotados; as ruas e estradas, cheias de corpos caminhando sem rumo. Os vivos e até os cadáveres tinham direitos — mas e os lázaros? A pauta seguinte já era anunciada pelo programa: “Meu pai ressuscitou. Como fica o inventário dos bens? Daqui a pouco conversamos com um especialista, o doutor…”

Chega de notícias. Colocou uma música e vagou através do bairro amanhecido. Rodou por quarteirões de prédios altos, restaurantes caros, lojas chiques. Havia poucas pessoas e carros. Voltou para a avenida da praia. Estacionaria na esquina do prédio da avó, colocaria o pé na areia, aproveitaria o sol e contemplaria o mar. Sairia assim que começasse a aparecer muita gente.

Mas o que viu ali, perto de um dos semáforos do calçadão da praia?

Eram três sombras lamentáveis, nem vivas, nem mortas, trajando farrapos. Vagavam juntos pela avenida, embora fossem, é provável, indiferentes ao sol, ao vento, indiferentes à cura praieira. Duas lázaros e um lázaro — e o grupo fora cercado por três homens sem máscaras. Eles usavam boné, camisas caras. Tinham barbinhas, tatuagens. Olga supôs que a trupe voltava de uma festinha clandestina. Tinham no máximo 20 anos de idade. Eles xingavam os lázaros, os empurravam, puxavam seus braços, seus cabelos, davam tapas neles. Em troca, nenhuma demonstração de dor, ou tentativa de autodefesa.

Olga freou o carro bruscamente, quase subindo no calçadão, e começou a buzinar.

— Deixa eles em paz! — Gritou, após abaixar o vidro.

Eles riram do jeito masculino que mais a tirava do sério.

Riam como se Olga fosse um poodle rosado, burro e saltitante.

— Vai embora sua putinha.

Saiu do carro e começou a bater boca com eles. Não havia ninguém na praia, nem no calçadão. Os poucos carros que passavam percorriam a avenida em alta velocidade, aproveitando os semáforos desativados.

Olga não demorou a perceber que os três estavam doidões. O grupo de lázaros não continuou sua caminhada. Observaram os vivos brigarem. Acompanharam, discretos, os movimentos dos quatro jovens. De repente, começou um empurra-empurra e Olga recebeu um soco no estômago. Ela se encolheu: a dor absurda e a falta de ar. E os caras não só voltaram a rir, como também cuspiram nela.

O sol bateu em seu rosto assim que ela deixou de arquear tanto o corpo. O sol-espada, bronze enferrujado. De relance, os lázaros. Quando buscasse assistência médica, Olga não saberia explicar a si mesma como encontrou forças para se erguer, estufar o peito, encarar o agressor e devolver, na cara de quem a tinha socado, a cuspida.

O segundo soco teve intenção, mas não eficácia, porque o homem, ao tentar esmurrar o rosto dela, simplesmente escorregou e meteu a cara no poste do semáforo. Olga segurou a cabeça dele pelos cabelos e bateu uma, depois duas e três vezes, rápido, rápido. O gesto — som metálico, as pancadas brutas e abafadas deformando aquele rosto. Os companheiros dele estavam sem reação. Quando sentiu que tentavam atacá-la, Olga gritou:

— INFECTADA to INFECTADA to INFECTADA.

Aquilo saía de um pântano e ia virando um animal afogado.

Os lázaros a acompanharam na gritaria. E quem ouve um lázaro gritar não esquece: eles gritam como se máquinas industriais tivessem gargantas e alma.

O agressor tentava se erguer com dificuldade. Suas mãos e pés buscavam apoio no poste, porém escorregavam no próprio sangue, que fazia um barulho semelhante ao de uma macarronada remexida.

— Por favor faz essas coisas pararem — eram os outros dois. Suplicavam e choravam ao som do jogral dos ressuscitados.

Olga se afastou dos três agressores e, para sua surpresa, os lázaros pararam de gritar. Os dois amigos fugiram no passo mais apressado possível, carregando consigo o amigo semiconsciente.

Todo o corpo de Olga tremia.

Ela sentia um calor subir no pescoço e cobrir suas orelhas. Respirava com dificuldade, porque o estômago a obrigava a sentir, outra vez, o soco.

Observou as mãos sujas de sangue. O vento quente sacudia papéis soltos na rua, bem como os seus cabelos e as palmeiras do calçadão. Imaginava coisas: com certeza não havia visto surgir um discreto sorriso no rosto dos lázaros. Olga poucas vezes tinha se sentido tão viva.

— Tantas vezes eu quis acordar e aqui estou, sobrevivente. Estou viva. E quanto a eles?

Ao olhar os lázaros, Olga pensou em solidão, mas também em memória. De nada ia adiantar, tios queridos, as verdades jogadas na cara da minha avó. Ela era uma porta fechada, selada. Mas, que estranho, ela continuaria presente. Nos dias e nas noites. Vovó não tinha mais respostas. Os piores e os melhores momentos? Dona Maria Lutz podia se lembrar deles? Nós conseguíamos agarrar os momentos, trazê-los de volta? Pelo contrário. Cada um já tem seu fardo e nada mais. Sua vovó se transformara no espelho da vida e da morte. Sua vovó voltava a ser um nome.

Que nomes, que dores, que medos as duas lázaros e o lázaro, à deriva na frente dela, tinham vivido?

“Somos todas espalhadas”, Olga concluía.

O sol acabava de escapar das nuvens e um brilho intenso revestia os lázaros. Olga enxergava uma humanidade, nem que fosse pelo avesso, nem que fosse devastada, miserável e esticada até o limite. E onde estão pessoas, estão os problemas e as responsabilidades.

Colocou, sem dificuldade, a trupe dentro do carro.

Hora de voltar para casa.

 

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Cristhiano Aguiar é professor de literatura e autor de três livros de contos, sendo o mais recente deles o título Na outra margem, o Leviatã.

 

A pesquisa científica que inspirou essa história é coordenado pelo pesquisador Amílcar Tanuri, virologista da UFRJ, que busca entender como se dá a resposta imune de pacientes brasileiros à infecção por SARS-CoV-2. Para isso, sua equipe analisa especificamente um grupo de profissionais de saúde que atuam na linha de frente e, portanto, são pessoas com alto risco de exposição ao Covid-19. O grupo responsável pelo estudo também é composto pelos professores Orlando Ferreira Junior, André Vale, Luciana Costa e Ronaldo Mohana.