Botao Vermelho 1 Flavio Pessoa fev.21

 

 

Você lê aqui o sexto conto da série Botão Vermelho, uma parceria do Pernambuco com o Instituto Serrapilheira que une literatura e ciência para pensar novos mundos. Clique aqui e acesse o editorial da série, escrito pela curadora e editora Carol Almeida, e os cinco contos publicados antes.

No texto abaixo, assinado pela escritora Eliana Alves Cruz, palavras em vermelho indicam informações científicas. Clique em cima delas para conhecer mais dados.

 

***

 

Ícaro estava de joelhos na total escuridão. Para ele tanto fazia a ausência de luz. O que o apavorava era o latido dos cães, bem próximos, e o som de tiros, mais distante.

— Diga de onde eles vêm pelo amor de Deus! — implorava seu irmão, Juliano, numa mistura de angústia e pavor. Podia escutar nitidamente os cães, mas não identificava muito bem os disparos. O suor empapando sua fronte e sua camisa.

Ícaro, mãos trêmulas, não levantou do solo. Podia ouvir os projéteis. Podia ouvir os latidos. Podia ouvir tudo! E parecia sentir todo o dilaceramento de corações. Ele não ergueu a face molhada de angústia e tristeza, mas apontou no ar para duas direções opostas.

Juliano olhou com desconfiança para o dispositivo em suas mãos. Chegara a hora da verdade, de testar se aquela engenhoca dava mesmo forma aos sons. O momento do teste final não poderia ter vindo em instante mais desesperador. E se a máquina apontasse para uma terceira direção? Em quem acreditar?

Com alívio, Juliano viu que o aparelho concordava com Ícaro em alguma coisa. Pôs a mão em concha na fronte tentando divisar o norte indicado em meio aquela penumbra soturna. Tentou ver com os ouvidos potentes de Ícaro, com os “olhos” precisos da máquina e com o da própria intuição uma saída daqueles porões, uma saída do Dédalo.


ÍCARO: ANOS ANTES

Além dos borrões que seus olhos permitiam divisar, Ícaro enxergava sons. Os ouvidos substituíram seus olhos desde o dia em que ouviu aquelas palavras estranhas: Retinose Pigmentar. Finalmente deram nome ao borrão que se agigantava diante de si a cada novo dia. Não conseguiu entender as explicações, mas viu as lágrimas da mãe, ou melhor, ouviu seu soluçar.

O médico ia explicando o passo a passo da perda de visão que estava em estágio avançado, enquanto sua mãe deixava rolar um choro silencioso. Pranto silente para todos, menos para ele. Ouviria este lamento mudo por anos sem conta.

O tempo corria e Ícaro mais escutando que vendo a feiura ou a beleza, a tristeza ou a alegria, a festa ou o enterro. Era pequeno ainda quando parou de enxergar à noite, logo, a escuridão era uma velha conhecida. Estava confirmado: O que o amedrontava era gente, pois a cegueira que podia abater-se sobre alguns seres humanos não obedecia à lógica. Era um ofuscamento da razão.

Em seus momentos de reflexão, Ícaro chegou à conclusão que a falta de visão provocada pela ignorância podia destruir coisas erguidas para libertar e construir cadeias potentes capazes de enredar um novelo eterno de amargura. Um carretel que funcionava ao contrário do fio que Ariadne, a do mito grego, ofereceu para Teseu sair do labirinto do Minotauro.

A propósito, sabe-se lá por qual motivo tinham lhe dado este nome, Ícaro. Também um ser mitológico que voou com asas de cera e caiu… Caiu por não enxergar o poder destrutivo da tão decantada claridade solar. O que é louvado como vida, também pode matar. Dessa forma, muito cedo aprendeu que a escuridão, o negrume, a ausência do sentido da visão, tidos como terríveis males, poderiam ser interessantes refúgios para lhe preservar a existência.

No selvagem ambiente escolar, seu irmão mais velho o protegia da horda que se juntava para gritar: “Quatro olho! Cegueta! Olho furado! Bengala branca!”.

O colégio não era amigável para ninguém, mas especialmente para ele, com sua visão que se extinguia rapidamente, o desafio era dobrado. Pessoas passaram a despertar nele um medo quase primitivo. A presença do irmão o fazia prosseguir. Juliano era uma muralha.


ANOS ANTES: JULIANO

Cresceu sabendo que um dia o irmão ficaria cego. Por ser o mais velho, a família tratou de colocar sobre seus ombros a responsabilidade em proteger o caçula. Não se importava, embora achasse que Ícaro tinha totais condições de sobreviver sem ele, pois, desde cedo percebeu que ele possuía uma espécie de super poder e fazia de tudo para exaltá-lo, para que o irmão entendesse que poderia seguir sua vida.

Aluno, aluna, funcionário, professor, pai ou mãe. Pessoa nenhuma! Não iria deixar que humilhassem seu irmão assim, impunemente. Ao contrário de Ícaro, que podia facilmente se orientar na escuridão com seus sentidos aguçados pela ausência da luz nos olhos, o que tirava Juliano do sério era o desconhecido que habitava o breu.

— Dona Maria Auxiliadora?

Juliano estava vivamente impressionado com o que acontecera à tarde. A rua estava lotada. Os dois em meio a ambulantes por todos os lados que gritavam, buzinas, motores, músicas em lojas, conversas, brigas de trânsito. Era o comércio popular do centro da cidade às vésperas do natal, mas Ícaro não se enganou. Era mesmo a vizinha, dona Auxiliadora, a mulher que passou por eles conversando em tom baixo com outra pessoa.

Ícaro apertou a mão do irmão em meio ao vai e vem de tanta gente.

— Isso que você sente se chama Antropofobia

— Antropofo o quê?!

— Ah, esquece. E eu tenho Nictofobia

— Nic… o quê?

À noite, Juliano lia para o irmão coisas que descobria em revistas sobre curiosidades científicas. Logo achou os nomes para o medo de gente e o de escuro. Os dois, deitados na cama beliche do quarto que dividiam, descobriam o que havia por trás do mundo que viam ou que apenas ouviam.

— “O morcego emite ondas sonoras em frequências inaudíveis para o ser humano que, ao encontrar um obstáculo, retornam e são captadas por seu ouvido especial. Pelo sinal reverberado, o morcego consegue medir a que distância está o objeto, qual seu tamanho, velocidade e até detalhes de sua textura”.

— Uau! — exclamavam ambos.

— Mas Ícaro… tem um pouco de morcego em você, né?!

Riram. Nascia um super-herói, mas Juliano ficava a pensar que se existiam pessoas como Ícaro, que conseguem amplificar um dos sentidos, certamente chegaria o dia em que a tecnologia aumentaria as percepções humanas para todos. Quando este momento surgisse seriam todos como os heróis dos quadrinhos? Ou no dia em que estas habilidades fossem comuns outros sentidos despertariam?

— Um super ouvido…

Botao Vermelho 2 Flavio Pessoa fev.21



ÍCARO E JULIANO – ANOS ADIANTE

Já eram adultos. Ícaro já sabia que podia viver sem a proteção que Juliano lhe dava na hora do recreio. À sua maneira desenvolveu métodos muito eficazes de sobrevivência. O medo de gente estava sob controle, mas vez por outra ainda o assaltava.

Seus ouvidos o ajudavam, mas também perturbavam. Escutar muito, por vezes, é o mesmo que entrar nas mentes. E antecipar intenções e ações exigia atenção para não enlouquecer. Não gostava de multidões.

Juliano, por outro lado, levou adiante sua ideia e finalmente estava na fase final da pesquisa que considerava um passo importante para mudar o cotidiano de muitas maneiras. Era motivo das piadas do irmão, pois levava para todos os lugares seu dispositivo que conseguia localizar e dar formas ao som.

— Para quê você precisa disso? Deixa que escuto tudo pra você.

Um homem passou por eles falando algo enquanto caminhavam no Supermercado enchendo o carrinho de compras com cervejas e petiscos para comemorar o financiamento que Juliano conseguira. Finalmente poderia aprofundar sua pesquisa.

Nascia um cientista. Os dois continuaram rindo das descobertas, antes de Juliano pegar no sono e Ícaro finalmente poder tatear a parede e apagar a luz.

Escolheram um horário em que sabiam que o estabelecimento não estaria cheio.

— Deixe cair esta embalagem daqui dois minutos. Vou para longe!

Estavam nesta espécie de brincadeira de testar os sons por entre as gôndolas do mercado e ver se o dispositivo era capaz de identificar. Na fila do pagamento, Ícaro empertigou-se. Fazia isso sempre quando ouvia algo que chamava sua atenção.

— Essa voz passou por nós há pouco

Aconteceu tudo em vertigem. Um, dois, três seguranças, a acusação, a irritação de Juliano que se viu a criança de escola que não levava desaforos para casa, a gerência, os braços presos por outros braços, o “me larga, porra!”, o “meu irmão não enxerga!”, o “é golpe! Claro que enxerga!”, outras vozes, muita gente, Ícaro ficando nervoso com a aglomeração, o tapa no rosto, a bolsa revirada, o revide, o “quero um advogado”, “é meu direito!”, “você tem direito de ficar quieto, o “já não é de hoje que estamos atrás de vocês, ladrõezinhos de merda!”, “estão nos confundindo com alg…”, a imobilização, a condução ríspida para o subsolo do mercado, os socos, “vão ficar hospedados aí essa noite”, a última audição daquela voz que passou por eles…

… o portão trancado, o escuro e o silêncio.

O subsolo era um espelho do que havia em cima. Um reflexo distorcido da realidade amena de objetos organizados e enfileirados sob a luz fria e a brisa artificial de potentes aparelhos de ar-condicionado do grande Supermercado Dédalo.

O porão tinha as mesmas gôndolas, prateleiras altas, caixas, corredores… Mas era um labirinto intrincado, desordenado, empoeirado, quente e sem luz. Então era assim que armazenavam o que iria para a mesa das famílias?

A noite caía e com ela toda e qualquer iluminação. Juliano suava frio. Ícaro pegou em suas mãos.

— Você não diz que tenho super poder? Vou escutar nossa saída — disse para acalmar o irmão. Mas como sair? Que barulho os conduziria para fora? As portas trancadas. O que teriam feito, afinal, além de se mover por entre as fileiras daquele enorme templo de consumo?

Muitas perguntas atormentavam os que foram jogados de uma aparentemente inocente compra, para um pesadelo em que precisariam de habilidades especiais para sair. Não que isso fosse novidade, pois desde que adquiriram a consciência de si viviam no limiar.

Ícaro agora se movia rapidamente, conduzido pelo irmão, por entre as muitas caixas, plásticos, prateleiras do tamanho de prédios. A cada curva, uma nova encruzilhada e a possibilidade do surgimento de um monstro no invisível. Parou como o perdigueiro que fareja algo.

— Anda! Vamos conseguir sair daqui — disse Juliano mais para si mesmo que para o irmão.

— Espera… Ouve!

Uma massa avermelhada era detectada pelo sensor de Juliano.

— Corre!

Ícaro assumiu a dianteira numa correria desabalada, confiando apenas nos olhos dos seus tímpanos que nunca haviam lhe enganado. Juliano demorou uma fração de segundos para acompanhá-lo até sentir o arfar de respirações ofegantes e sedentas atrás de si. Eram os cães treinados para não deixar que saísse quem na calada da noite ousasse invadir o grande estoque.

Juliano, acostumando um pouco mais os olhos à penumbra, divisou enorme placa onde se lia: “Limpeza e Higiene Pessoal”. Alcançando os frascos em tempo recorde, jogou uma quantidade de líquido de sabão no solo atrás de si, fazendo os bichos patinarem e confundirem o olfato com o odor enjoativo e artificial de flores do campo.

Seguiram na correria desabalada como carros de corrida que derrapam, contornam e dão voltas ao redor de uma pista fechada. Os barulhos externos ganhando cores cada vez mais definidas até que Ícaro parou novamente. Um enorme vulto sobrevoou suas cabeças.

— Um morcego…

O bicho planava, mas não queria suas jugulares, apenas os cachos de bananas empilhadas. O mamífero voador parecia um mensageiro. Indicou a saída por um basculante quebrado.

Do lado de fora, depois de alguns minutos para respirar, puseram-se a caminhar. Agora não mais os cães, mas o som dos tiros. Ícaro tapou os ouvidos com as duas mãos. Juliano olhou seu dispositivo e ele indicava o caminho de casa. Partiram a toda velocidade.

Chegaram à ladeira onde moravam com a noite alta. Vizinhos, amigos, conhecidos. A rua estava tomada. Os tímpanos de Ícaro ouviram e a máquina de Juliano localizou, mas a bala seguia perdida dentro de um corpo infantil como os deles um dia foram. Policiais circulavam averiguando o ocorrido.

— É a quarta vez que escuto esta voz hoje — disse Ícaro.

Sim, o experimento de Juliano estava concluído e aprovado. Havia dado forma e direção exata a todos os sons daquela noite tenebrosa, mas apenas a habilidade de Ícaro foi capaz de dar um rosto.

Quando sua invenção ganhou prêmios e foi adotada pela segurança pública da cidade, Juliano dedicou as conquistas ao irmão. Teria finalmente chegado o momento em que seriam como os heróis dos quadrinhos ou havia chegado a hora de buscar sair do enorme labirinto de Dédalo em que viviam, aguçando outros sentidos?

— Antropofobia… Vou começar a estudar um antídoto para isso.

 

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Eliana Alves Cruz é escritora e jornalista. Entre suas publicações, estão contos em edições dos Cadernos Negros e os romances Água de barrela, O crime do cais do Valongo e Nada digo de ti, que em ti não veja

 

A pesquisa científica que inspirou essa história é de Igor Miranda, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia, que possui graduação e mestrado em engenharia elétrica pela Universidade Federal da Bahia, onde também se graduou doutor em engenharia industrial. Igor fez pós-doutorado na Universidade de Stellenbosch, África do Sul, em pesquisas de engenharia aplicada à medicina. Sua pesquisa consiste em utilizar conceitos interdisciplinares que comportam matemática, ciência da computação e engenharia elétrica, para investigar formas de representar e processar sinais de múltiplos sensores para possibilitar a criação de dispositivos de sensoriamento minúsculos e com alto desempenho. O objetivo é fazer desses sensores ferramentas de observação aumentada do mundo que nos cerca, amplificando sentidos, como a visão e a audição.