dossie artigo jan24 1

Intensos processos de desenvolvimento tecnológico impactaram os rumos da arte no século XX. As comunicações, pela primeira vez na História, tornaram-se acessíveis a milhares de pessoas através das ondas de rádio. A música negra, historicamente utilizada para suportar e resistir ao cativeiro, com o fim da escravidão, tornou-se um importante elemento para reorganização do povo negro em sentido global. Por diversos fatores, como grande população afro-americana liberta e proeminência econômica e tecnológica, a música negra dos Estados Unidos teve grande destaque internacional. Conhecida inicialmente por termos genéricos e pejorativos como race music, a Black Music produzida nos EUA passou a influenciar não só os rumos da indústria fonográfica, mas de processos político culturais interna e externamente.

A cultura brasileira moldada por processos particulares de organização social, institucional e intelectual fabricou a ideia de uma escravidão benevolente, imprimindo no samba, fundamentalmente criado a partir da cultura negra por escravizados e seus descendentes, a imagem que a colonização masculina e branca pretendia estabelecer como discurso oficial, constituindo o principal instrumento discursivo para a consolidação no imaginário popular da “democracia racial”. Entretanto, sem constituir um movimento articulado de compositores, a história do samba foi marcada pela temática racial, apresentando diversas denúncias contra o “preconceito de cor”, assim como processos de segregação e despejos no contexto urbano, contra os as favelas e territórios populares, a exemplo das canções A favela vai abaixo (1927), de Sinhô, Opinião (1964), de Zé Keti e as icônicas Saudosa maloca (1951) e Despejo na favela (1969), de Adoniran Barbosa.

Com as transformações da terceira revolução industrial, em meados do século passado, os brasileiros começaram a ver o mundo de outra forma, assistindo pela primeira vez a uma transmissão televisiva de Copa do Mundo, no ano de 1962. Nessa década, para além da ruptura institucional com o golpe militar de 1964, teve início um processo intenso na música popular brasileira para reconectar-se com suas origens negras. Sob influência da música negra estadunidense, gradativamente os elementos musicais daquele país passaram a influenciar nossos artistas. Foi nos anos de 1960 que Elza Soares e Wilson Simonal despontaram pela hibridização da estética musical brasileira e norte-americana, com algumas letras ressaltando a temática racial, apresentando em primeiro plano suas condições de pessoas negras. Juntou-se a estes, dando fundamento para a Black Music Brasileira da década seguinte, o arranjador, compositor e instrumentista Dom Salvador, com o álbum homônimo de 1969, formando o revolucionário Grupo Abolição, que mais tarde daria origem à banda Black Rio.

A década seguinte elevou para outro patamar este movimento de transformação da música brasileira de musicalidade e identidade negra, completamente inovadora. A década de 1970 foi a década de Cassiano, Jorge Ben, Tim Maia, artistas cujas obras foram alicerces para uma nova tradição musical brasileira, influências fundamentais para o surgimento do rap nacional.

Esse movimento de modernização, com forte influências da música internacional e resgate da identidade negra, por não estar acompanhado de um conjunto de ideias antirracista bem articuladas e politizadas frente às instituições governamentais, em um contexto de intensas disputas políticas contra a ditadura militar, foi alvo de críticas da esquerda sob a alegação de escapismo e alienação em um contexto político repressivo. Ao estarem exclusivamente orientados por um crítica política marxista das estruturas de classes, com pouca ou nenhuma interssecionalidade com as questões raciais, esses grupos políticos organizados não percebiam como a música e as práticas culturais de valorização da identidade do povo negro – como Ilê Aiyê, primeiro bloco afro fundado em 1974, em Salvador – forjavam os primeiros movimentos de aglutinação para o questionamento da “democracia racial” brasileira. A efervescência da nova musicalidade negra facilitou a valorização identitária do povo negro, fundamental para o reconhecimento das estruturas de opressões racistas.

Não era apenas música. Toda uma estética dava sentido aos movimentos culturais nascentes. Cabelos black, calças largas e muita atitude frente aos padrões de branquitude constituíram o estilo e comportamento das e dos frequentadores das festas black, em clubes e em espaços públicos. Foi a partir de reuniões em torno das festas black que surgiu o primeiro elemento do hip-hop no Brasil: o break dance ou somente break. Importantes espaços de encontro e socialização da juventude da década de 1970 e 1980, sob o ritmo do soul e do funky, tinham a dança como elemento aglutinador. Começaram a surgir as primeiras crews, grupos que ensaiavam ao som de toca-fitas à bateria nas ruas.

Foi assim que surgiu a Funk & Cia, no ano de 1977, uma das primeiras do país, formada por Nelson Triunfo, considerado um dos fundadores do hip hop nacional, que marcou a história do break ao promover encontros nas ruas de São Paulo, promovendo o desenvolvimento da dança de rua, sempre acompanhado de forte discurso libertário e agregador, fato que lhe rendeu diversas prisões. Nelson e sua galera participaram do programa de Silvio Santos, apresentando a dança do robô. Em 1984, inclusive, coreografaram a abertura da novela global Partido alto.

Foi nessa efervescência das ruas que os primeiros MCs e grupos de rap começaram a dar forma e ritmo aos discursos dos negros e periféricos da cidade de São Paulo. O LP exclusivamente de rap foi a coletânea Hip hop cultura de rua, lançado em 1988, tendo como destaque a música Homens da lei, uma denúncia da violência policial, por dois ícones do rap nacional: Thaíde e DJ Hum. No ano seguinte, chega às lojas o Consciência Black, Vol. 01, apresentando ao público os Racionais MC’s, com a música Pânico na Zona Sul, abordando a violência nas periferias, onde os “justiceiros são chamados por eles mesmo/ Matam humilham e dão tiros a esmo”. A explosão de violência nas periferias paulistanas nas décadas de 1980 e 1990 aparece como temática principal da cena rap, período em que a sociedade brasileira estava saindo de um regime autoritário.

Como parte da abertura negociada com os militares, tivemos a manutenção da estrutura das polícias, especialmente da polícia ostensiva, que tinha o papel de conter os “dissidentes” ao projeto nacional-desenvolvimentista. Passado o período de exceção, a mentalidade policial de enfrentamento aos “dissidentes” internos foi preservada, assim como os grupos paramilitares (origem das atuais milícias) formados para atuação ao arrepio das leis.

Normalização de violações de direitos humanos; aumento das desigualdades sociais; reduzido alcance da oferta de serviços básicos, especialmente à justiça; intensa crise econômica (elevada taxa de inflação, baixo crescimento provocaram queda nos salários e crescimento do desemprego) na América Latina etc. constituem um cenário perverso nas metrópoles brasileiras, especialmente São Paulo e Rio de Janeiro, que estavam superlotadas, com pouca ou nenhuma capacidade de gerenciamento do espaço urbano pelos poderes públicos. Os números da violência letal variam na mesma intensidade e direção, tendo como alvo homens, jovens, negros moradores de periferia, fato que insere o genocídio da juventude como uma realidade brasileira.

O sentimento de revolta, de urgência e a necessidade de sobrevivência de uma população historicamente alijada e descrente das ações governamentais, incapaz de produzir ordem e previsibilidade cotidiana, fizeram emergir estruturas alternativas de governança territorial. Estrategicamente posicionadas em meio à miséria, as igrejas evangélicas, o Primeiro Comando da Capital e o Hip Hop constituíram-se como organizações informais para autogestão das periferias, a partir da transformação da consciência coletiva. As igrejas, ao encontrarem uma organização social comunitária frágil, com as pessoas descrentes na vida mundana, com pouca ou nenhuma oportunidade e expectativa, praticavam um discurso de salvação, ofertavam dignidade, paz espiritual e integração social por meio da fé

O PCC, de dentro das cadeias, como forma de gerenciar o sanguinário sistema prisional, estabelece um estatuto, define regras e centros de comando, emitindo diretrizes de conduta (os famosos salves) para dentro e fora das cadeias. A estrutura baseada em funções bem-definidas impelia os indivíduos a não agir exclusivamente de acordo com a própria vontade, sujeitando-se aos propósitos do grupo, sempre objetivando beneficiar a coletividade. A violência não poderia mais ser utilizada para resolução de conflitos interpessoais. Tudo isso fazia ainda mais sentido para os envolvidos no crime à medida que os ganhos financeiros aumentavam: os crimes violentos não mais chamavam atenção da polícia e a estrutura gerencial produzia previsibilidade, aumentando os lucros para toda a cadeia de negócios ilícitos. Assim como para a vida religiosa, a vida no crime passou a requisitar conversão (batismo) e adesão a uma nova consciência ética.

Nesse contexto, o rap surge enquando movimento artístico de comunicação de massa, conscientemente orientado pela experiência territorial com uma demanda imperativa: o fim do genocídio da juventude negra. Formado a partir de vínculos e ideias compartilhadas comuns, o hip hop passou a funcionar como uma espécie de família, com discursos e práticas que provocam integração e isolamento. A atitude da primeira geração do rap era repulsiva à mídia, à polícia, aos governantes, identificados como especuladores dos problemas e das dores da favela. As músicas quase sempre abordam a realidade de forma contundente, crua, foram taxadas de radicais e até mesmo censuradas (o clipe Isso aqui é uma guerra, do importante grupo paulista Facção Central, foi proibido pelo Ministério Público de ir ao ar na televisão aberta, sob a alegação de apologia ao crime e a violência). No ano de 1997 o ritmo atingiu seu auge até então.

Considerado uma das maiores obras da música brasileira, o disco Sobrevivendo no Inferno, dos Racionais Mc’s, foi lançado, vendendo 1,5 milhão de cópias, número surpreendente pela postura refratária do grupo com veículos da mídia tradicional. Nele, lançam um discurso de aceitação e acolhimento dos seus, independente de estarem ou não na vida do crime, sendo recorrente a utilização elementos religiosos, assim com a presença lírica de pastores evangélicos e bandidos. Observa e compartilha os sentimentos de privações, desejos e frustrações que atraem os jovens ao crime para, ao fim, afirmar que “malandragem de verdade é viver”. Esse disco representa um marco não só pela sua alta qualidade enquanto obra artística, mas por ter evidenciado o rap enquanto expressão artística de produção de conteúdo intelectual de excelência, ao mesmo tempo que erodiu definitivamente a ideia de democracia racial utilizada historicamente pela intelectualidade para preservação das estruturas de opressão contra o povo negro.

O tempo passou e o ritmo se desenvolveu alcançando todas as partes do país, contudo, sem que o mercado fonográfico e midiático se abrisse para artistas da Região Nordeste. Reagindo à invisibilidade e ao papel de produtores de música tida como regional reservado aos nordestinos, Diomedes Chinaski e Baco Exu do Blues escreveram Sulicídio, uma Diss (típica do rap, é uma música criada com o intuito expor alguém ou algum grupo, linha que se assemelha à embolada e ao repente) expondo a cena rap sudestina. A correlação de forças não mudou, mas o cenário parou para discutir a importância de novos nomes na transformação do ritmo em patrimônio nacional. Nesse sentido, ressaltamos alguns nomes de pouca visibilidade, mas de grande contribuição para a cena, como as pioneiras Dina Di, Kamila CDD e Negra Li, além da nova geração com Tasha & Tracie, Bione, Cristal, Preta Rara, Bixarte, assim como Don L, RAPadura, Nego Gallo, Vandal, Diomedes Chinaski e tantos outros e outras.

Felipe França é agente cultural do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST), cientista político e sociólogo.