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O português do Brasil ainda é provinciano. Nossas dimensões continentais nos tornaram condescendentes. A verdade é que são poucos os cidadãos mundiais que podem viver tão plenamente absortos em sua própria cultura quanto os brasileiros. Não é difícil viver uma vida inteira no Brasil, uma vida plena e rica, só consumindo cultura audiovisual brasileira, das músicas às novelas, só convivendo com pessoas brasileiras, mal e mal consciente de que existem outros países além-fronteiras. Só o estadunidense tem uma empáfia tão autocentrada quanto a nossa. Sim, sabemos que, um dia, no passado, houve um país chamado Portugal: Camões escreveu Os Lusíadas e ficamos independentes dele. Mas, para esse brasileiro médio, que nunca vê filmes portugueses no cinema ou ouve músicas portuguesas nas rádios, é como se Portugal não existisse mais, uma nação tão morta quanto a Roma Antiga. E, naturalmente, se Portugal mal e mal existe, os outros países lusófonos, do Timor-Leste a Angola, nunca nem existiram. Para quebrar esse paroquialismo, nada melhor que a onda de grande literatura lusófona sendo publicada no Brasil nas últimas décadas, especialmente africana, de Mia Couto a Agualusa, de Kalaf Epalanga a Ondjaki.

Para a imensa maioria das pessoas brasileiras, que ignora as milhares de línguas originárias ainda sobrevivendo em nosso país, a língua portuguesa é um dado. Ela está por todos os lados, em todos os periódicos, em todos os canais de TV, nas rádios, nos outdoors. Nunca houve a proposta de uma brasilidade que não fosse lusófona. Para todos os fins e efeitos, é como se Brasil e a língua portuguesa fossem uma coisa só, encalacrada, já resolvida.

Uma das maiores delícias de ler autores como o músico e escritor angolano Kalaf Epalanga é que, para ele, a língua portuguesa está longe de ser um assunto enterrado e resolvido. Ela é um problema apaixonante e uma paixão problemática. Epalanga nos lembra que não somos um continente que fala uma língua que é só nossa: por mais que façamos questão de ignorar essa realidade, somos parte de uma comunidade lusófona global. Linguisticamente, o brasileiro médio, mais que monoglota, é monogâmico: agimos como se a língua fosse só nossa. Mas o português, queiramos ou não, saibamos ou não, está na cama com vários outros países, com várias outras culturas. Me disse um amigo de Amsterdã: “A língua holandesa é como pijama: só usamos em casa”. Não é definitivamente o caso da última flor do Lácio. Ou — como sugere Caetano W. Galindo em seu recente e excelente Latim em pó (Companhia das Letras, 2023) — “broto africano, flor de Luanda”.

Para Epalanga, músico tornado escritor, a língua portuguesa não é um dado, mas uma ferramenta. O fato de sua produção artística ser classificada como “literatura lusófona” é algo que ele somente “aceita”, se sentindo incompleto e envergonhado por achar que não está contribuindo para a construção de uma literatura angolana descolonizada, “uma literatura que respondesse à minha inquietação: sem a presença, a compreensão e o uso das línguas que carregam a memória dos nossos antepassados, como poderemos gritar alto que a nossa história não começa com a chegada dos europeus à África?”, como escreve em Minha pátria é a língua pretuguesa, livro de crônicas que acaba de chegar ao Brasil pela editora Todavia. Nos outros países lusófonos, a relação com a língua nunca é tão tranquila. Como diz Mia Couto, citado por Epalanga: o idioma português pode até não ser o idioma dos moçambicanos, mas é o único idioma da moçambicanidade. 

Epalanga, nascido em 1978 numa Angola independente convulsionada pela guerra civil (1975–2002), é filho da geração que efetivamente fez a independência. Seus pais, em larga maioria, não tinham o português como língua materna, mas fizeram questão que seus filhos tivessem: “é-me difícil compreender o porquê de terem descartado o ensino das línguas bantus aos seus filhos”. A resposta dos pais é a mesma de tantos africanos: a língua do colonizador, justamente por não pertencer a nenhuma das etnias em conflito pelo poder político, era a que melhor servia ao projeto de união nacional. Ao vencedor, a língua.

Rara é a crônica onde Epalanga não faz conexões inusitadas entre países e culturas lusoafricanas que mal aparecem no horizonte cultural brasileiro, um horizonte que vai se parecendo mais e mais limitado na comparação, seja por paroquialismo (brasileiros que só falam de Brasil) ou viralatismo (que só enxergam valor na produção cultura dos Estados Unidos e Europa). A cada vez que esse angolano, com seus amigos moçambicanos, vai a um clube noturno lisboeta (cidade que ele define como a mais africana da Europa) ouvir ritmos cabo verdianos, é uma facada salutar na nossa condescendência continental brasilcêntrica.

Pode o pretuguês falar?

Duas das crônicas de Minha pátria é a língua pretuguesa trazem reflexões sobre o filme Pantera Negra (2018) e do seu significado para as pessoas africanas da geração de Epalanga. A existência de Wakanda, uma nação africana ultra tecnológica, traz consigo um exercício mental “com a amplitude que só um produto de Hollywood consegue atingir”: o que teria sido da África sem seus conquistadores brancos e colonizadores europeus? Se as fronteiras nacionais tivessem sido desenhadas pelos próprios africanos? E se? Para nós, pessoas brasileiras, esse exercício mental pode ser muito fecundo. Eu, por exemplo, penso logo em uma de nossas maiores autoras, Carolina Maria de Jesus. Quem seria Carolina sem a escravidão e sem a favela, sem a pobreza e sem a desigualdade? Como ela escreveria? Qual seria sua voz autoral?

Em 2005, fazendo mestrado em literatura brasileira nos EUA, nos deram para ler Quarto de despejo. Eu, menino privilegiado e ignorante, nunca tinha ouvido falar. Na livraria, não tinha pra vender. Na biblioteca, todos os exemplares em português já tinham saído. Li Quarto de despejo pela primeira vez em uma tradução ao espanhol. Chegando na aula, folheei os livros das colegas e senti a facada bem nas minhas costas. Tudo bem, sempre soube que tradutores são traidores, sou um deles, aceito a pecha, mas nunca tinha sentido essa traição realmente na pele: enquanto Carolina escrevia um português que era só dela, com todos os desvios da norma culta que tinham lhe sido impostos pela desigualdade brasileira, a Carolina-hispânica falava num espanhol quase perfeito. Ela tinha sido corrigida, domesticada, higienizada. E surge a questão: o português de uma de nossas maiores escritoras precisa ser corrigido? O pretuguês de Carolina Maria de Jesus precisa ser embranquecido?

O assunto ganhou as páginas dos jornais. Sua obra maior, Quarto de despejo, está atualmente em catálogo pela Ática na versão editada e corrigida por seu “descobridor”, o jornalista Audálio Dantas. Mas já sabemos, pelo cotejo cuidadoso desse texto publicado com os diários manuscritos de Carolina – trabalho primoroso realizado por Elzira Divina Perpétua, e publicado em seu A vida escrita de Carolina Maria de Jesus — que Audálio fez edições muito extensivas, cortando trechos e até acrescentando frases. Já a Companhia das Letras está publicando a obra de Carolina e começou por Casa de alvenaria, a sequência a Quarto de despejo, publicado em dois volumes e respeitando todas as idiossincrasias do pretuguês de Carolina. O assunto, porém, não está resolvido.

De um lado, intelectuais, como Regina Dalcastagnè, professora de Teoria Literária da Universidade de Brasília (UnB), consideram que, ao não corrigir esses desvios, o mercado literário mantém Carolina na posição exótica de outsider. Afinal, os grandes escritores sempre têm sua escrita corrigida pelas editoras antes de chegarem ao público. Do outro lado, o Conselho Editorial Carolina Maria de Jesus, formado por suas filhas e por escritoras e intelectuais negras, como Cidinha da Silva e Conceição Evaristo, defende “deixar a literatura de Carolina poder ser, sem tantas interferências”, “apresentá-la da maneira mais integral possível”, ao invés de “higienizá-la” e “esvaziá-la”.

O assunto “pretuguês”, como fica claro, transcende a própria lusofonia. Em 2014, publiquei pela Hedra uma tradução anotada da autobiografia do poeta escravizado afrocubano Juan Francisco Manzano. Autodidata, esse homem brilhante aprendeu a ler e escrever por conta própria, nas madrugadas, apesar das proibições de seus senhores. Em 1836, uma sociedade abolicionista lhe encomendou uma autobiografia de sua vida no cativeiro. Manzano atendeu a encomenda — o manuscrito original, em sua própria caligrafia, está na Biblioteca Nacional José Martí, em Havana — e, em troca, os abolicionistas publicaram o texto traduzido em Londres e fizeram uma vaquinha para comprar sua liberdade. Manzano, assim como Carolina Maria de Jesus, conquistou um futuro melhor — ele, a liberdade; ela, o sucesso literário — através de seu gesto transgressor de se apropriar da língua literária da elite para denunciar essa mesma elite. Mas, naturalmente, ambos escreviam fora da norma culta.

A verdade é que a autobiografia de Manzano e o diário de Carolina são mais que seu conteúdo: a forma da escrita de ambos é o melhor autorretrato que temos deles e sua maior contribuição à literatura. Seus erros de ortografia, gramática e sintaxe nos inspiram respeito: não são erros, mas sim marcas tão concretas e tão reais da escravidão quanto os lanhos de chicote em sua carne. Corrigi-los significa apagar sua trajetória, silenciar seu sofrimento, rasurar sua vida.

Para tentar transmitir à pessoa leitora brasileira uma experiência o mais próxima possível à de ler Manzano no original, tentei criar desvios da norma culta e idiossincrasias verbais em português que fossem similares, e na mesma proporção, aos que ele teria cometido se tivesse crescido e aprendido a escrever como uma pessoa escravizada no Brasil de princípios do século XIX. Ou seja, na prática, inventei um pretuguês oitocentista. A editora, entretanto, apesar de aceitar essa versão pretuguesa, bateu o pé: se não houvesse também uma versão na norma culta, o livro não poderia ser publicado. “E os editais do governo?”, disseram. (De fato, o livro foi um dos selecionados para o PNLD 2018.) Então, o livro, como saiu em 2014, tem duas versões da mesma tradução: em pretuguês e em português.

Em pretuguês: “Mas vamos saltar dos annos 1810 11 e 12 até o presente de 1835 deixando em seu intermedio o vastisimo campo de visisitudes escolhendo entre elles os graves golpes com qe. a fortuna me obrigou á deixar a caza paterna ou nativa pa. experimentar as diversas cavernas com qe. o mundo me esperava p. devorar minha inesperiente e debil joventude”. E na norma culta: “Mas vamos saltar dos anos de 1810, 1811 e 1812 até o presente de 1835, deixando em seu intermédio o vastíssimo campo de vicissitudes, escolhendo entre elas os graves golpes com que a fortuna me obrigou a deixar a casa paterna, ou nativa, para experimentar as diversas cavernas com que o mundo me esperava para devorar minha inexperiente e débil juventude”.

Em um ensaio famoso, publicado em 1985, a pensadora indiana Gayak Spivak perguntou: “Pode o subalterno falar?” Talvez seja o caso de levarmos a pergunta um passo além: “pode o pretuguês falar... sem ser corrigido?” O pretuguês se basta? Precisa ser escoltado pela norma culta?

Minha nação é minha pele

Epalanga, ao escrever sobre o leve aceno de cabeça com o qual todas as pessoas negras se cumprimentam pelo mundo, comenta que a cor da pele já é, em si mesma, uma nacionalidade. Até pouco tempo atrás, com a exceção dos mouros do Norte da África, poucos foram os africanos negros que saíram do continente por vontade própria. Quase sempre, foram violentamente arrancados. Então, ser negro fora da África é compartilhar uma pátria, uma identidade, um senso de comunidade que independe do país onde a pessoa nasceu. O aceno é reconhecimento e uma celebração: eu te vejo, estamos aqui, estamos vivos. Nesse sentido, o pretuguês de Epalanga e de Carolina, assim como a fala do escravizado cubano (afrospanhol?), são diferentes variantes de uma mesma língua pan-africana, dessa fala comum a todas essas pessoas que, ao se esbarrar em Oslo ou Osaka, trocam um rápido, poderoso aceno de reconhecimento.

Minha pátria é a língua pretuguesa traz crônicas interessantes e compartilha conosco o amplo universo cultural afrolusófono do autor. Mas, por serem crônicas, não se propõem em aprofundar as questões da africanidade do português. Para quem quiser saber mais, recomendo Por um feminismo afro-latino-americano (Zahar, 2020), citado na epígrafe e escrito por Lélia Gonzalez, a brilhante antropóloga afro-brasileira que cunhou o termo “pretuguês”. Além disso, também vale a pena ler o já citado Latim em pó, de Caetano W. Galindo, que além de fazer um delicioso passeio pela história da nossa língua, dedica deliciosas páginas às suas raízes africanas. São leituras tão leves quanto um livro de crônicas, muito informativas e bem mais recompensadoras.

 

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