Anpocs 1 Rafael Olinto dez.21

 

Seria ostentação um termo adequado para se apreender o mundo do luxo? A pergunta é sugestiva, de certa forma faz parte de nosso senso comum, dizemos que muitas pessoas têm um comportamento “ostentatório”, “esnobe”, ao consumirem objetos caros e sofisticados. O vínculo entre ostentação e luxo seria assim algo natural. 

A noção de consumo conspícuo, elaborada por Thorstein Veblen (1857–1929), é certamente a referência principal para o debate. Em seu livro A teoria da classe ociosa (1899), ele estabelece uma distinção entre consumo conspícuo e “emulação pecuniária”; seu intuito é demarcar as diferenças entre as classes sociais. Haveria uma elite que se contentaria em exibir uma vida luxuosa, e os outros, membros das classes inferiores, que através da emulação (imitação) procurariam se aproximar dos estratos superiores. Enquanto alguns afirmariam seu status pelo consumo seletivo de itens específicos, outros buscariam na “imitação” uma forma de atingir uma posição de prestígio que lhes é denegada.

As teses de Veblen foram discutidas por inúmeros autores, porém não é minha intenção retomar esse debate. Quero trabalhar um aspecto específico da noção de consumo conspícuo: a visibilidade. Chamo antes a atenção para a noção em si: a palavra conspícuo existe em inglês, português, italiano, espanhol, mas não em francês (neste idioma, a ideia foi traduzida por “consommation ostentatoire”). Em espanhol, apesar da palavra existir, o conceito foi também traduzido como “consumo ostensible”, o que reforça sua aproximação com a ideia de ostentação. Conspícuo é o que “salta à vista”, “é claramente visível”, “atrai a atenção”; daí sua associação com as coisas “ilustres”, “nobres”, “notáveis”. Para Veblen, este tipo de comportamento refere-se à exibição da riqueza com o intuito de manifestar o status e o prestígio de quem a desfruta. Pressupõe-se assim uma dimensão pública (da exibição) na qual os indivíduos se “medem” uns aos outros, sendo capazes de orientar suas condutas na direção de maximizar ou minimizar suas expectativas de classe. Para isso o consumo deve necessariamente ser visível: ao se expor “à vista de todos”, ele se realiza enquanto afirmação de superioridade; a visibilidade é a materialização de sua existência (o verbo ostentar deriva do latim ostentare, que significa "mostrar").

Ostentação, luxo, visibilidade. Avanço um pouco mais no cerne de minha argumentação. Não é difícil perceber que a modernidade clássica do século XIX traz com ela a emergência de uma esfera pública, esse é o momento em que surge uma opinião pública. Entretanto, o surgimento deste espaço específico não se restringe à dimensão política, ele possui um significado mais amplo; é a própria noção de espaço que se transforma com a modernidade. O advento do transporte coletivo nas cidades, a invenção do trem e do automóvel (que impulsionam as viagens), têm uma implicação imediata na circulação de pessoas, mercadorias e objetos no seio desse lugar público. A condição de ser visível torna-se generalizada. Por isso a fotografia é vista como uma espécie de marco inicial desta modernidade, ela é o prenúncio de uma era na qual, através de um mecanismo técnico, a imagem faz a mediação da presença do original em sua ausência. Esta dimensão de ubiquidade irá se acentuar ao longo dos séculos com o desenvolvimento do cinema, televisão, internet. No espaço da modernidade-mundo, a visibilidade dos objetos de luxo ocupa agora uma posição de destaque. Dentro deste quadro, impulsionada pelo mercado global e a expansão desta espacialidade transnacional, a dimensão conspícua do luxo, em princípio, teria se reforçado.

Entretanto, é possível duvidar deste senso comum. Sua verdade não encerra a solidez que aparenta. Retomo, para tanto, algumas questões que desenvolvi em O universo do luxo (Alameda Editorial, 2019). Antes de mais nada, esclareço o que entendo por universo: trata-se de um território no interior do qual habita um modo de ser e de estar no mundo, ele é constituído por indivíduos, instituições, práticas e objetos. Uma bolsa Prada ou um frasco de perfume Dior não existem apenas em si; eles adquirem sentido quando articulados a outros objetos (cristais Lalique), outras instituições (Hermès, Louis Vuitton), outras práticas (frequências a hotéis palácios, viagens em iates). É o conjunto desses elementos discretos que configura um universo. 

Consideremos o mapa do mercado dos bens pessoais (vestidos, acessórios, bolsas) vendidos nas butiques de luxo. Em termos globais, é possível discernir algumas regiões do mundo no qual ele se concentra: Europa, América, Ásia. No interior desse espaço amplo, observa-se uma concentração por países: Estados Unidos, China, França, Itália etc. E no interior dos países, o que à primeira vista é homogêneo se decompõe em cidades: Paris concentra 76% do mercado; Londres, 83%; Moscou, 94%. Mas, ao nos aproximarmos dessas cidades, percebemos que as lojas de luxo não se situam em qualquer lugar, estando instaladas nos bairros nobres da malha urbana; e dentro deles ocupam poucos quarteirões ou até mesmo algumas ruas (Bond Street em Londres; Rue Saint Honoré em Paris; Quadrilátero Mágico em Milão). O espaço de bens de luxo é formado por pontos descontínuos afastados uns dos outros, mas que se encontram articulados pelo mesmo código. Dito de outra maneira: ele é simultaneamente global e hiper-restrito. 

Portanto, não pode existir sem as fronteiras, é preciso deixar claro que as coisas de luxo são “excepcionais”, “únicas”, “perfeitas”, qualidades que as diferenciam do “vulgar”, “banal”. A superioridade dos objetos e das práticas de luxo deve ser realçada e separada do que se encontra ao seu redor (os infinitos objetos da sociedade de consumo). Cultiva-se assim duas virtudes fundamentais: raridade e inacessibilidade. As empresas utilizam a estratégia de produzir a escassez controlada dos objetos para manter uma distância prudente em relação à banalidade das coisas. Evita-se desta forma uma eventual confusão entre o raro e o ordinário, domínios que devem se manter separados. Por exemplo, as séries limitadas de determinados produtos, como o perfume L'Instant de Guerlain: disponível em 750 exemplares, frasco polido à mão e tampa envolvida em ouro fino. O luxo deve ser inacessível no sentido figurado e próprio do termo. 

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Mas quais seriam as fronteiras desse território “excepcional”? É possível representá-lo graficamente através de círculos concêntricos. No centro, encontram-se os produtos “verdadeiramente luxuosos”, isto é, aqueles que expressariam a essência de sua razão de ser. Esta parte vital do universo sediaria os objetos claramente inacessíveis ao mundo profano: iates, aviões particulares, palácios, alta costura, objetos de arte. Em seguida viria o segundo círculo: aí temos os objetos elegantes, mas que são, na verdade, “declinações” do luxo. Esta parte é composta por elementos menos nobres: prêt-à-porter, acessórios como sapatos, malas de viagem. Sublinho o termo declinação. Trata-se de uma categoria nativa (dizem os antropólogos) que implica a existência de uma força que pode ser transmitida de um corpo para outro (um pouco como a noção de mana para Marcel Mauss). A declinação teria a capacidade de transmitir as virtudes nucleares da essência para os artefatos que dela se afastam. Por fim, na última linha do círculo se concentrariam os produtos ditos acessíveis: cosméticos, perfumes, vinhos e aguardentes. 

A representação gráfica sugerida permite pensar as fronteiras deste território como algo móvel. Na parte externa ela se dilata e se contrai em função das demandas do mercado, o perigo é banalizar a aura. O segundo círculo encontra-se numa posição mais confortável, está mais afastado das coisas banais. Resta o centro, que se quer indivisível e inacessível. Neste sentido, a noção de conspícuo dificilmente se aplicaria ao universo do luxo como um todo. As fronteiras turvam sua visibilidade. Na melhor das hipóteses poderíamos dizer que apenas os pontos à margem seriam visíveis. Neste sentido, a máxima de Coco Chanel é paradigmática: “o luxo é tudo aquilo que não se vê”. 

O mundo do luxo define-se por um conjunto de particularidades refinadas. Entretanto, os universos simbólicos, para existirem enquanto tal, devem se materializar em espaços concretos; eles tomam forma quando se constituem em práticas quotidianas. Posso assim afirmar: o universo do luxo realiza-se no mundo dos ricos, sem essa dimensão material o valor simbólico que encerra permaneceria incompleto. Sua verdade não se resume aos objetos, é preciso que ela se manifeste em atividades frequentes e repetitivas: viagens de iate, degustação da alta gastronomia, visitas às butiques da Avenue Montaigne, deslocamentos em primeira classe ou jatos privados. O luxo e o mundo dos ricos partilham a mesma intenção: são globais e hiper-restritos. 

Um indicador desta restrição é a relação que existe entre o crescimento do mercado de bens de luxo e o aumento do número de milionários. Ou seja, existe no planeta um número suficientemente amplo e restrito de pessoas, capaz de dar sustentação a esse mercado. Outro aspecto refere-se à sua expansão. Quando se analisa os dados dos bens pessoais de luxo, percebe-se que ao longo do tempo (1996–2015) o crescimento não é significativo nos países que antes concentravam o consumo desses bens. Ele não conheceu um aumento expressivo na Europa ocidental ou nos Estados Unidos. O incremento se faz com a entrada dos novos segmentos das classes superiores de outros países (Brasil, Rússia, China). O universo do luxo e o mundo dos ricos recrutam os seus membros nas classes abastadas da sociedade. A eles pode ser aplicada a máxima: “o luxo não se democratiza; globaliza-se”. 

Os estudos sobre a distribuição da riqueza mostram uma exorbitante concentração de renda em escala global; o aprofundamento da desigualdade e a disparidade entre os mais abastados e os estratos inferiores implica uma distância abismal. Há uma correlação nefasta entre a concentração da riqueza e o incremento da desigualdade. Daí a necessidade das fronteiras. Há várias maneiras de se estabelecer o traçado desses limites: a segregação espacial nas cidades, a dificuldade de acesso a determinados lugares. Um exemplo emblemático desse mecanismo de segregação é o transatlântico The World. Esta cidade flutuante possui seis andares e abriga as residências secundárias de um grupo abastado. Cada família é proprietária de um estúdio ou de um apartamento num total de 165 moradias, população que não ultrapassa 250 pessoas entre residentes e hóspedes. Todos são companheiros de viagem, a rota tendo sido definida de antemão através do voto dos membros deste clube excepcional. The World é um “lugar” (no sentido pensado pelo antropólogo Marc Augé) que se separa do mundo ordinário. Outra forma de se demarcar os limites é através do preço dos objetos. Um exemplo: bolsa Kelly, no modelo simples, em couro, custa em torno de 4 mil euros; em couro de crocodilo, 10 mil euros; em couro de crocodilo e ornada em diamantes, atinge o valor de 80 mil euros. A diferenciação de preços exprime a declinação da aura: produtos acessíveis, intermediários, inacessíveis. 

O universo do luxo e o mundo dos ricos são insulares, e uma maneira de se captar esta dimensão é através da noção de segredo. Este é um elemento idiossincrático do mundo dos ricos, sobretudo quando se refere ao patrimônio e às operações financeiras. Os paraísos fiscais são a face visível do que se quer eludir. Mas a celebração do ocultamento estende-se a outras esferas. Por exemplo, os livros e vídeos que se ocupam do tema: O segredo dos ricos, Segredo que os ricos não querem que você saiba, O segredo dos ricos revelados. Os textos e as imagens mostram como a riqueza se expõe à visão: ilhas paradisíacas, casas exuberantes, uma coleção de automóveis raros. Entretanto, no encontramos distante da ideia de conspícuo. Os antropólogos nos ensinam que a noção de segredo implica a coexistência de mundos separados; são os rituais de passagem que propiciam o deslocamento de um domínio para o outro, do profano para o sagrado. Neste sentido, o segredo revelado do luxo permanece mascarado; a visão apenas arranha a superfície do que se dissimula aos olhos do espectador. Porque existe a separação radical de domínios, é preciso de um mediador que relate para o grande público o que se encontra fora do alcance coletivo. Livros e vídeos funcionam como mediadores entre compartimentos excludentes, trazem aos leigos a imagem de algo que lhes escapa. Sem a mediação, nada está à vista. 

Quando Veblen escreve sobre a classe ociosa, seu pensamento leva em consideração as mudanças recentes de sua época. Ele discute particularmente a questão do ócio, que lhe serve de guia para demarcar as diferenças entre as classes improdutivas e as classes produtivas. O luxo surge, assim, como uma manifestação da inutilidade das coisas: se opõe ao trabalho, denota o que é inativo, ocioso. Claro que o fundo histórico no qual se ampara o raciocínio do autor mudou radicalmente. Entretanto, o diagnóstico apresentado é sugestivo, nos permitindo fazer algumas considerações em relação ao presente.

A visibilidade do consumo conspícuo pressupõe a existência de uma esfera pública partilhada pelas diferentes classes sociais. Elas são desiguais, ocupam posições hierárquicas distintas na sociedade, porém se encontram (entram em conflito) neste território comum. Nele os sinais das classes superiores são visíveis, isto é, são reconhecidos de maneira inequívoca. A ostentação é uma técnica de explicitação da desigualdade. Na situação de globalização as coisas tomam outra configuração. Não nos encontramos diante do “fim das fronteiras”, temos agora sua redefinição. A existência de espaços globais hiper-restritos indica que elas se reforçam em sua exiguidade planetária. A condição de visibilidade torna-se então precária. As classes superiores construíram para elas um lugar ao abrigo do público; neste sentido, a dominação se exerce pelo ocultamento. A ostentação como afirmação de superioridade não é mais necessária, e seu apagamento confirma as barreiras que demarcam os privilégios. Esse é o segredo: o que se encontrava à vista torna-se difuso, o abismo social manifestando-se na sua invisibilidade.

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