Por um bom tempo, encarei a tarefa imprecisa de perseguir a efígie de Victor Heringer (1988-2018). Primeiro enquanto autor, presença literária. Li tudo que havia publicado: comecei por O amor dos homens avulsos (2016), seu último romance, em seguida Glória (2012), que lhe rendeu um Prêmio Jabuti, e, por fim, automatógrafo (2011), sua estreia na poesia. Fui fisgado por cada um dos livros de forma particular, muito a partir do modo como eles criam um desdobramento engenhoso entre linguagem, banalidade e poética. A sensação era de completo arrebatamento pelas sacadas luminosas e a beleza inusitada. Além disso, me intrigaram por serem obras que apontam para o próprio fazer literário, num jogo de ironia e metaficção – não à toa, depois descobri que a obra do espanhol Enrique Vila-Matas fora seu objeto de pesquisa de mestrado.[nota 1] De lampejo, cheguei a outro nível de obsessão literária, quando me rendi a ler suas crônicas, as plaquetes virtuais de poemas, os textos esparsos na internet e os vídeos feitos para “automatógrafo”, seu canal do Youtube. Queria alcançá-lo. Pratiquei diversos tipos de investigações imprecisas. Buscava entendê-lo numa tentativa – imatura, confesso – de ficar íntimo do lugar de onde partiram seus gestos literários.
Penso no crítico Silviano Santiago, no texto Singular e anônimo, quando ele diz que “poema (e leitura), morte (e vida) existem como um bastão numa corrida de revezamento”. Entre o autor e a obra, cabe a nós uma “travessia pelo possível”. Seria demasiado injusto crer que poderia desvendar exatamente quem foi Victor. E penso também em Roberto Bolaño, com Estrela distante (1996). “Seguir alguém que não se mexe, alguém que tenta com êxito tornar-se invisível”.
Com a intenção de reunir alguns dos lastros textuais deixados por Heringer, esses fragmentos dispersos que ajudam a formar o mosaico da face esperta de sua literatura, o escritor e editor Carlos Henrique Schroeder organizou Vida desinteressante, fragmentos de memórias: Crônicas da Revista Pessoa (2014-2017) (Companhia das Letras). O livro reúne crônicas de Heringer publicadas na Revista Pessoa e até então inéditas em livro. Composta por 70 textos, é a primeira publicação póstuma do autor e está prevista para setembro. Schroeder me responde em entrevista por e-mail. Se o universo de Heringer fosse uma casa, essa publicação seria uma “janela para o mundo do autor: estão lá as referências de Victor, suas obsessões, seus amigos, sua relação com o Rio e com São Paulo, sua sinceridade e também seu olhar afetuoso sobre o mundo”, explica.
As crônicas de Heringer, são repletas de calor e um tanto das tramas e dramas do Rio de Janeiro. Tanto como paisagem, quanto cosmogonia – inclusive, também está presente seu deslocamento do Rio para São Paulo. No texto para seu manifesto-oficina Sobre escrever, segundo métodos diversos,[nota 2] no modo prescritivo de se escrever uma crônica, pontuava: “cerveja à vontade, a depender do sol e da alegria textual”. O que me remete à abertura de O amor dos homens avulsos: “No começo, nosso planeta era quente, amarelento e tinha cheiro de cerveja podre”. Talvez um jeito todo próprio “carioca”, um ethos de se pensar tanto a crônica quanto a origem do mundo.
O Rio de Janeiro de Heringer, local onde nasceu e viveu, forma um mapa sobreposto, desenhado entre o Bairro da Glória de seu primeiro romance e o bairro ficcional Queím, escondido na zona norte da cidade e que atua como local mitológico da infância do autor em O amor dos homens avulsos. Contudo, antes de ser “autor carioca”, passou a infância entre outras cidades e países, principalmente na Argentina e no Chile. Em algum momento de sua vida achou que seria naturalizado chileno e viveria em Santiago.
Heringer acabou por fixar residência no Brasil, e acabou por se tornar um “autor carioca”, antes mesmo de ser um “autor brasileiro”. Formou-se em Letras pela UFRJ, foi bolsista da Fundação Casa de Rui Barbosa e trabalhou no Instituto Moreira Salles. Em suas referências literárias, Machado de Assis certamente assume um espaço de destaque. Como ele gostava de rememorar, seu primeiro livro foi uma edição de Dom Casmurro comprada em uma banca de revistas. A partir daí, os óculos acanhados, que ocupavam o centro do rosto e pelos quais Machado enxergava a sociedade, se tornaram instrumentos de observação do mundo para ele. Como pontuou, em 2017, para o extinto site Modos de Escrever: “Machado de Assis e Manuel Bandeira são meus dois pais. As obras me influenciam como autor, mas sobretudo ajudaram a forjar minha identidade, que, aos poucos (esta é a esperança do ficcionista), vai se diluindo nos meus próprios livros, até que eu possa ser ninguém em paz. Machado me deu os olhos, Bandeira me deu o coração.”
Pela crônica que dá título ao livro, temos acesso a trechos violados – pelo próprio Heringer – de um diário que manteve por anos. São notas breves sobre suas experiências e a literatura, que mostram como de uma vida “desinteressante” se construiu o olhar observador do autor. A ilusão de proximidade é tamanha, que parecemos conseguir vê-lo pensando. No dia 19 de outubro de 2014, escreveu: “Tive meu primeiro alumbramento em São Paulo um dia desses: confundi três torres piscando com estrelas. Torres de celular”.
Ainda na crônica Vida desinteressante, é possível ver anotações de uma São Paulo pré-eleições de 2014. E a situação política está sempre presente, como uma mobília despedaçada e cheia de cupins em uma sala de estar. Ele fala de uma espécie de tensão “caquistocrátrica” no ar. “Imagine: um país comandado por comentadores de portais de notícia”, escreveu. Na verdade, acho que o que fica aparente nessas crônicas é que, desde 2014, o país como um todo era uma mobília infestada de cupins. Hoje, talvez seja até um caixão de madeira. Também cheio de cupins.
Em O erro da Lava Jato, por exemplo, Heringer ironiza com leveza o fato de a infame operação corromper a língua portuguesa com a ausência do “a” entre as palavras lava e jato. A política é sempre tópico acertado, como uma espécie de trivialidade de tons apocalípticos. Schroeder comenta o lugar do autor enquanto comentarista político da crise pós-2013: “Muitas de suas crônicas são premonitórias. Em uma delas, publicada em setembro de 2014, ele já trata do ‘inchaço monumental dos neopentecostais, a ponto de influenciarem a sério o debate político no país’. E ele não se surpreendeu com a ascensão de Silas Malafaia. ‘Estava profetizado que, das hostes do povo do Senhor, sairia alguém como o pastor Malafaia, mestre de oratória, treinado nas artes liberais (é psicólogo, segundo afirma) e sem nenhum medo do demônio (ele quase não fala em Satanás). Sua figura reúne todos os pré-requisitos para a afirmação no mainstream da sociedade brasileira’”.
UM AUTOR DA CRISE
Antonio Candido, em A vida ao rés-do-chão, dizia que a crônica é esse lugar familiar, mais próximo da anedota e do dia a dia dos indivíduos. Uma forma de incursão pela beleza das coisas simples. Justamente por isso é tido injustamente como um gênero trivial ou menos rico que o romance, por exemplo. Já Walter Benjamin enxergava o narrador do gênero como indissolúvel de suas experiências, mas sempre partindo dos lugares turvos da memória. Um achatamento temporal, uma presentificação da história. Heringer foi um cronista em tempos de crise, pessoais, coletivas e de linguagem. Tanto se pensarmos o recorte de tempo de ser uma produção pós-Jornadas de Junho de 2013 e toda instabilidade política por elas gerada quanto se pensarmos em seu potencial de colocar a própria crônica enquanto gênero em crise em relação à linguagem e ao tempo.
Como diria a historiadora Sandra Jatahy Pesavento, a crônica é filha da aceleração moderna e da fetichização do mundo. Seu nome vem também de uma ideia de Cronos (tempo), o terrível titã que devorou seus filhos. Nas mãos de Heringer, o tempo e a linguagem são uma espécie de titã a desfigurar, ou melhor, deglutir os cânones literários. Isso é o que Carlos Schroeder eventualmente chama de “anticrônica”, fazendo paralelo com Nicanor Parra e a antipoesia. “Ele queria uma mistura de gêneros, mídias e reflexões. Era algo muito natural para ele essa mistura de linguagens. E isso é possível ver nas suas cadernetas, onde poemas e contos se misturam com colagens, desenhos, aforismos, pinturas, poemas visuais. Um conto que nasce de um desenho ou um desenho que nasce de um poema. Victor sempre defendeu que a mistura de linguagens é muito importante para o trabalho de qualquer artista. Gostava de usar a palavra ‘arejar’. Uma linguagem arejando a outra”, me escreve Schroeder.
Creio que essa forma de “arejar linguagens” tenha contribuído para que Heringer tenha se tornado uma persona que provoca no leitor o desejo de procurá-la. O autor contemporâneo pode se tornar, ele próprio, qualquer um e qualquer linguagem num piscar de olhos: pode se tornar um vídeo-poema, uma vídeo-performance, um vídeo-manifesto, um conto, um romance ou mesmo uma crônica. Tamanha versatilidade não reitera o mito do multiartista iluminado, muito antes que isso, mostra como o artista precisa ser constituído por matéria moldável, aderente ao seu tempo. “Mais do que se tornar ninguém, escrever é se tornar qualquer um. Para o escritor, não há a confortável ilusão da identidade, só as ansiedades das mil personalidades”, meditou Heringer em Sobre escrever.
Confesso que não retive qualquer resposta satisfatória para completar a imagem de Victor Heringer que procurava. Comecei um texto procurando um autor e terminei ele descobrindo que o autor queria ser qualquer um. Ao me aproximar, fiquei cada vez mais distante. Contudo, essa sua forma líquida de ocupar as linguagens me parece uma pista para o funcionamento da máquina “heringeriana”. Um maquinário humano, que ganha outra dimensão, no momento em que, pesquisando para escrever esse texto, descobri que era feliz enquanto o escrevia. Era essa sua maneira de estar no mundo: havia felicidade no vácuo de se tornar qualquer um que deixava em sua obra. Uma passagem do manifesto de Vida desinteressante: “a uma ex-namorada com quem planejava passar o restante da vida, disse: quando eu morrer, se alguém perguntar, diga que eu era alegre escrevendo”.
Numa dessas buscas, na internet, encontrei Victor falando de um projeto para um livro futuro, que não chegou a ficar pronto ou a ser lançado. Foi para o podcast Equipe IMS, em julho de 2014. Segundo ele, gostaria de lançar seu próximo livro no formato de um único longo poema e chegou até a ler um desses versos. Decido então encerrar este texto sobre alguém que nunca conheci com um trecho de um livro que talvez ninguém vá ler: “E pensar que tudo evolui para esgarçada solidão cósmica”. É que, na literatura e na vida, coisas misteriosas precisam existir mesmo. Afinal, o que seria de nós sem essas coisas que não vemos?
NOTAS
[nota 1] Enrique Vila-Matas: A ironia e a reinvenção da subjetividade, defendida na UFRJ em 2014. Disponível em https://xdocs.com.br/doc/enrique-vila-matas-a-ironia-e-a-reinvenao-da-subjetividadepdf-jovm4qxg32ov
[nota 2] Disponível em https://issuu.com/tatianafaia6/docs/01_caderno4_victor_heringer_provas1