O último censo do IBGE, de 2010, assinalou 61% de aumento na população evangélica em dez anos. Se o novo censo (a ser realizado esse ano) confirmar essa tendência de crescimento, já não seremos mais um país com maioria de católicos.
Gilberto Freyre talvez se surpreendesse com este fenômeno. Afinal, foi ele que nos disse que é difícil apartar o brasileiro do católico. Mais do que isso, considerou o catolicismo cimento da sociedade brasileira.
Admitindo a validade de sua tese, os dados atuais tornam inevitável a pergunta: diante de uma transformação acelerada na religiosidade, quais são agora os fundamentos dos laços societários no Brasil? Essa é uma indagação sociológica por excelência e creio que o próprio Freyre tem uma contribuição teórica importante. Especialmente a partir de Casa-grande & senzala, ao discutir o lugar do catolicismo no processo de constituição do sistema social no Brasil, penso ser possível, senão respondê-la, ao menos delinear os fundamentos originais sobre os quais está se assentando a diversidade religiosa contemporânea no país.
Comecemos a explorar essa questão a partir das duas imagens potentes oferecidas por Freyre no seu livro inaugural. A primeira é a de que o catolicismo é um dos vértices de um triângulo que representa o sustentáculo do sistema de dominação colonial – composto também pelo patriarca e pela monocultura de cana. Para o autor, engenho, casa e capela formam o tripé que manteve o complexo de relações originário da civilização brasileira.
A outra imagem se relaciona com uma concepção teórica sustentada por Freyre de que há “leis sociológicas” que regulam os processos de ocupação do espaço social, entre os quais a competição e a submissão. Com efeito, Freyre afirma que, na origem do sistema social brasileiro houve um embate pelo monopólio das terras que resultou na vitória da casa-grande sobre a Igreja. Senhores tornaram-se então donos absolutos das propriedades territoriais, das mulheres, escravos e capela. Sob o domínio da ordem privada, o catolicismo se apresentou no Brasil menos como sede de um Estado eclesiástico do que como uma edícula de propriedade do patriarca.
Para o autor, os representantes da Igreja nessa luta com patriarcas foram sobretudo os jesuítas, protagonistas da mais dura moral católica. Os padres da Companhia de Jesus atuaram como rivais dos senhores na medida em que impuseram à sociedade patriarcal uma concepção de república teocrática, composta por indígenas e caboclos portadores de um comunitarismo impessoal. O projeto jesuítico se espalhou por várias áreas do país, unificando a linguagem e criando notáveis focos de colonização.
Para além dos fatores relacionados à Reforma Pombalina (segunda metade do século XVIII), há três elementos aos quais Freyre atribui a vitória do projeto patriarcal sobre o projeto jesuítico.
Em primeiro lugar, o autor considera que, na ação catequizadora, houve falta de compreensão antropológica da vida dos nativos. Para Freyre, os padres da Companhia de Jesus, ao impor compulsoriamente a monogamia entre os indígenas não realizaram senão, a “degradação” da cultura local, cujos sintomas se expressaram em doenças psíquicas diversas, inclusive o alcoolismo. Em outras palavras, Freyre parece entender que a conversão religiosa foi exigente de algum nível de contemporização e assimilação cultural, ausente na catequese dos jesuítas.
Em segundo lugar, Freyre constata que houve, no Brasil, difusão de ideias religiosas não-europeias que obstruíram a ortodoxia dos padres da Companhia. O autor se refere à influência renitente da cultura muçulmana que se impôs no Brasil não apenas de modo indireto pelos portugueses (que no passado experimentaram os efeitos culturais da invasão árabe na península), como também pelos negros escravizados, muitos deles de origem islâmica. Houve, inclusive, coincidente confluência entre a “falta de moral sexual dos índios” e a poligamia muçulmana, dificultando ainda mais a doutrina jesuítica. Também a repercussão da religiosidade africana, que Freyre considera “menos elevada” (porque mais próxima do animismo), teria favorecido o fracasso dos jesuítas e a transformação do próprio catolicismo numa direção mais mística.
O terceiro fator que podemos destacar diz menos respeito a contingências culturais do que a uma espécie de “agir racional com relação a fins” pressionado pelo condicionamento geográfico. Para Freyre, as adversidades do trópico contribuíram para que regras morais rigidamente europeias fossem afrouxadas. Por vezes, verifica-se, no argumento dele, que a luxúria foi também uma estratégia, única eficiente, diante da carência demográfica, do tamanho das terras a serem ocupadas e do azar diante das escassas possibilidades de extrativismo. É assim que o autor se refere, em muitas passagens de Casa-grande & senzala, à poligamia como uma forma deliberada de extensão da família patriarcal para o exercício de suas funções.
Com efeito, neste ambiente desfavorável ao puritanismo, selada a derrota dos jesuítas, a dinâmica social operou em favor da força centrípeta do patriarcado, submetendo a Igreja à lógica familista. Para Freyre, desenvolveu-se aqui um controle societário que não surgiu da ação institucional da Coroa Portuguesa ou da Santa Sé, mas se desenvolveu desde o ambiente doméstico das casas-grandes.
Nesse processo, o catolicismo afastou-se da ortodoxia feudal. Evidências disso Freyre diz encontrar nas negociações perversas das sinhás com Santo Antônio para que encontrasse de maridos a objetos perdidos; nos crucifixos sob os lençóis durante a cópula; nas intimidades e até vulgaridades nas referências à Virgem Maria e nos batismos que convertiam, pelo apadrinhamento, filhos ilegítimos em legítimos. Em resumo, santos e santas eram moradores das casas-grandes, atuantes nas intrigas e com incumbências de orientar achados, engravidar moças, vingar deslealdades.
Os padres (redondos pelo consumo dos quitutes das cozinhas das casas) também atuavam nesta trama que impunha, inclusive, a conservação da brutalidade das relações gestadas pela escravidão e pela monocultura. Não podemos esquecer que frequentemente as cenas que surgem das páginas de Casa-grande & senzala e Nordeste nos mostram uma sociedade na qual negras e negros, mulheres brancas, solo e rios eram barbarizados a serviço da tirania do senhor e da indústria do açúcar. Por isso, entre antagonismos sociais bastante extremados, o equilíbrio social era exigente de aproximações (inclusive sensuais) e de ajustes finos nas tendências sádicas e masoquistas que somente o catolicismo desprovido dos ossos da doutrina puritana poderia realizar.
Dessa breve síntese, creio ser importante destacar alguns aspectos que, reunidos, poderão ajudar a pensar processos sociais no Brasil contemporâneo.
O primeiro ponto que surge, neste recorte analítico que propusemos, é o princípio fundamental da sociologia da religião: trata-se de perceber o fenômeno religioso como parte indissociável da dinâmica social, ou seja, não apenas artífice da sociedade, mas também seu resultado. De fato, a partir das contribuições do sociólogo pernambucano, podemos dizer que, no Brasil, o catolicismo sofreu uma conversão em direção ao relaxamento do dogmatismo feudal. Permeável às influências culturais não europeias, orientalizou-se, sensualizou-se e fetichizou-se, adaptando-se e, também, possibilitando a acomodação social reclamada por uma sociedade cujo equilíbrio social entre antagonismos, tão extremados pela escravidão e pela monocultura, era tarefa difícil.
Observa-se que, para o autor, o catolicismo “amolengado” no Brasil atuou se opondo à rejeição da vida ordinária. Operou por meio de santos funcionais que trabalhavam pela satisfação de desejos mundanos. Nesse contexto, o erotismo, especialmente, não assumiu o lugar de interdito, tampouco de suspensão ritual do cotidiano, mas foi praticado como ofício laborioso e, tanto quanto a tortura e o estupro, foi técnica rotineira de dominação social.
Seguindo nessa direção, podemos afirmar que Freyre procura demonstrar que, no Brasil, houve um tipo particular de racionalização, distinto do processo discutido por Max Weber em seu estudo sobre a ética das religiões mundiais. No limite, como hipótese, é possível dizer que Freyre admite que aqui a ação racional para empreitada colonial não teve como fundamento a oposição ao mundo através do ascetismo, mas transformou em técnica laboriosa os “instintos”, em particular o sexo e a ira.
Outra observação que cumpre destacar é que, quando a prática religiosa se realiza por meio de santos representados segundo o alcance privado, a ideia de um deus, salvador ou profeta transcendente se enfraquece. Isso tem consequências sociais importantes na medida em que dificulta tanto a institucionalização de uma ética baseada na salvação extraterrena quanto a despersonalização das relações. Ou seja, a leitura de Freyre nos sugere que, em um ambiente patriarcal no qual o catolicismo foi domesticado, as ações foram menos condicionadas a uma vontade sobrenatural do que às aspirações tiranas de sujeitos concretos negociadas santo a santo. O fraco protagonismo de um agente sobrenatural não apenas reduziu conflitos entre seus possíveis desejos e os interesses do clã familiar, como também impediu a impessoalização do amor na forma de uma fraternidade universal.
Com efeito, aqui identifico um ponto nodal que nos leva a uma possível hipótese acerca do tipo de propriedade cimentícia que o catolicismo desempenhou no Brasil. Nossa unidade social é mais resultado do equilíbrio (gerido domesticamente com auxílio de santos, santas e padres) de relações que oscilam entre extremos de sadismo e masoquismo do que de uma ética fraterna impessoal. O catolicismo, submisso à lógica privatista, operou em favor da dominação política do privado, impedido de desenvolver laços mais abrangentes de solidariedade social.
Considerando que a formação social original tem potência para condicionar sociologicamente o presente, esta reflexão de Freyre sobre o catolicismo nos oferece elementos para compreender as bases sobre as quais um possível puritanismo evangélico se sustentaria no Brasil, bem como seus limites e possibilidades. Freyre nos estimula a pensar tanto acerca do borramento das tensões entre deus e os interesses familiares, materiais e mundanos, quanto sobre o modo como a proteção da família se constitui em finalidade última da ação pública, em nome da qual se produz e se justifica o embaraço entre Estado e religião no Brasil contemporâneo. Igualmente, oferece uma chave importante para refletir acerca dos bloqueios para formação de uma ética fraterna despersonalizada representada, por exemplo, pela defesa aos Direitos Humanos ao mesmo tempo em que se desenvolve a institucionalização do extermínio como vingança ao “inimigo”.
Nesse sentido, mais do que contrapor Freyre à realidade que superficialmente parece negá-lo, creio que é possível estreitar seu diálogo com a teoria sociológica clássica para propor uma sociologia da dominação no Brasil.
REFERÊNCIAS
Gilberto Freyre. Casa-grande & senzala, 50ª edição. Global Editora. 2005.
Gilberto Freyre. Nordeste, 6ª edição. Rio de Janeiro, Record, 1989.
Gilberto Freyre. Sociologia: Uma introdução aos seus princípios. 2ª edição. Rio de Janeiro, José Olympio, 1957
Max Weber. Ética econômica das religiões mundiais. Petrópolis, RJ: Vozes.