Baby jul19 Hana Luzia e Luisa Vasconcelos


Brasil, 1968. Enquanto urubus passeiam entre girassóis e há tigres e leões soltos nos quintais, somos incitados ao consumo de ideias e produtos de toda sorte: os militares que vendem como idílico um país em frangalhos (“ninguém mais segura este país”), os estudantes franceses que propõem barricadas e sonhos como estratégia política (“sejam realistas, exijam o impossível”), bens de consumo duráveis (“Volksvagen 1600, um Volksvagen em nova embalagem”) e não duráveis (“Wembley, o cigarro mais alegre que você vai conhecer”). Entre esses anúncios, uma terna canção com presença massiva nas rádios sugere aos ouvintes, ou lhes impõe, estranhas prospecções: “você precisa saber da piscina, da margarina, da Carolina, da gasolina – você precisa saber de mim”.

Síntese macia do Tropicalismo, Baby, a canção de Caetano Veloso que adquiriu musculatura na voz de Gal Costa, consolidou uma ideia de modernidade que vinha sendo esboçada e retrabalhada desde o advento da bossa nova, 10 anos antes. Na verdade, era a culminância de uma culminância anterior (que seria a bossa nova), dentro de um processo de elaboração estético-política que se estendia desde a Semana de Arte Moderna de 1922. Em um momento de violenta supressão democrática, ela coloca em circulação nas rádios e televisores do país um ousado projeto de modernidade crítica, que as vanguardas artísticas antropofágicas vinham desenvolvendo desde o início dos anos 1960.

Lançada em agosto de 1968 (quatro meses antes do AI-5, portanto), no disco-manifesto Tropicalia ou panis et circensis, a composição era a cartilha e o ABC de um consumo cultural moderno; um manifesto “consumista-afetivo”, que discorria sobre a inserção do país na indústria cultural da década de 1960, o nosso lugar na cultura de massa (subalternizado, pero no mucho) e uma possível conciliação das antigas tensões entre o erudito e o popular.

Era preciso estar atento ao sangue sobre o chão, mas sem abrir mão de uma ternura cotidiana enquanto estratégia de resistência. A canção não era apenas convidativa ao consumo pop de então (“ouvir aquela canção do Roberto”, a Carolina de Chico Buarque, aprender inglês para se inteirar das mensagens estrangeiras), mas também se tratava de uma convocação pública a uma guerrilha do afeto: tomar um sorvete na lanchonete, ver de perto a quem se ama, estabelecer o cuidado de si e dos seus em um país em estado de exceção.

MONUMENTO BEM MODERNO

No ensaio Entre o erudito e o popular, José Miguel Wisnik argumenta que o arco que compreende o desvario dos modernistas de primeira hora à bossa nova marca o momento em que “a cultura letrada de um país escravocrata tardio enxergou na liberação de suas potencialidades mais obscuras e recalcadas, ligadas secularmente à mestiçagem e à mistura cultural, entremeadas de desejo, violência, abundância e miséria, a possibilidade de afirmar seu destino e de revelar-se através da união entre o erudito e o popular”.

No entanto, não há projetos de modernidade isentos de disputas por poderes. A bossa nova e o Tropicalismo, orquestrados pelas elites culturais de suas épocas, não fogem à regra. Ao mesmo tempo, continuidade e ruptura com a primeira, se tomarmos como base a controversa definição de “linha evolutiva” da música popular brasileira (cunhada por Caetano Veloso, em 1966), o Tropicalismo buscava conciliar as tensões entre o erudito e o popular não a partir do apagamento dos estigmas de subdesenvolvimento do país, como o fizera a bossa nova, mas através da exploração de suas potências. Sob esse aspecto, os tropicalistas estavam infestados pelo germe de Oswald de Andrade.

No conjunto de ensaios Tudo em volta está deserto, Eduardo Jardim sustenta que as mesmas categorias-chave do Modernismo dos anos 1920 estiveram na base do Tropicalismo: o par modernismo e passadismo, a articulação entre o elemento nacional e o contexto universal (que inseria o país no concerto das nações) e a desejada coalizão entre o erudito e o popular, como parte de um projeto de unidade cultural nacional.

Para Wisnik, no entanto, o movimento arregimentado por Baby adensava as estratégias antropofágicas de seus antecessores a partir de atos paródicos mais elaborados, através dos quais “o colonizado, assinalando voluntária e criticamente as marcas de sua humilhação histórica, desrecalca os conteúdos reprimidos e dá a eles uma potência afirmativa”.

A bossa nova havia sido um desdobramento cultural condicionado a um projeto de modernidade extenso e vistoso, inclusive de caráter civilizatório (todos não o são, afinal?). Como destaca Silviano Santiago, em Genealogia da ferocidade, o país vivenciava a euforia político-desenvolvimentista dos anos de Juscelino Kubitschek e de seu afamado Plano de Metas, conhecido pelo slogan “50 anos em 5”. Santiago contextualiza a modernização asséptica e ambiciosa da década de 1950 para contrastá-la ao surgimento de um monstro chamado Grande Sertão: veredas, em 1956. Um monstro cuja qualidade selvagem se destaca com nitidez na paisagem modernizadora do Brasil de então, “como um objeto estético insólito, uma pedra-lascada, e não uma pilastra em concreto armado, geometricamente perfeita”. Baby também era um monstro selvagem na paisagem militarizada de 1968, mas sabiamente fantasiado de um ingênuo pierrô.

O amplo projeto de modernização de JK esbarraria na instabilidade dos anos que seguiriam ao seu governo, com a renúncia de seu sucessor, Jânio Quadros, e a perseguição ao vice deste, João Goulart. Esse processo culminaria no golpe militar que, por 20 anos, estrangularia a frágil democracia brasileira, cujos hematomas roxo-escuro estranhamente escureceram nos últimos anos, e voltaram a deixar à mostra grossas marcas de dedos.

Baby simboliza o ápice de uma tentativa de modernidade crítica que, em certa medida, falhou. E falhou por conta das realidades da modernização conservadora da ditadura militar, da indústria cultural e da globalização, como sugere Wisnik. Nas palavras do autor, o Tropicalismo fora “ao mesmo tempo, e contraditoriamente, o fim do ciclo (desses projetos de modernidade) e a vontade de dar-lhe uma nova e incisiva atualidade”.

A ditadura seria ainda mais embrutecida com o AI-5, em 13 de dezembro de 1968; 14 dias depois, Caetano Veloso e Gilberto Gil seriam presos pelo regime, sendo enviados para o exílio meses depois, de onde só retornariam em definitivo em janeiro de 1972. É evidente que Baby, um hit inesperado, não pereceu, nem os preceitos tropicalistas, que se ramificaram em diversas movimentações culturais importantes no país, como o desbunde, mas o projeto de modernidade que isso tudo representava fora violentamente diluído.

BIOGRAFIA DE UMA CANÇÃO

Se pudéssemos visualizar o arranjo que o maestro Rogério Duprat compôs para Baby, ele teria a dinâmica veloz do crescimento de uma bactéria. Inicialmente, ouvimos acordes de um baixo e batidas de baquetas. Em segundos, soma-se um violão e, logo depois, uma bateria suave. Em seguida, metais deslumbrantes expandem tons e texturas. São 43 segundos de uma sinfonia multicolorida até surgir a primeira ordem de Gal Costa, que, sob o auxílio preciso de Duprat, transforma uma estrutura celular básica em um complexo e político organismo vivo.

Não havia cantora mais apropriada para vestir Baby da modernidade crítica que ela tão bem vendia do que Gal. Mesmo que a canção tivesse sido encomendada por Maria Bethânia, irmã do compositor, e para a voz dela desenhada. Gal ainda era Maria da Graça, Gracinha, quando conheceu Caetano Veloso, em 1963, em Salvador. Ali, eles descobriram compartilhar de um elo sagrado: ambos eram devotos de João Gilberto, pai da bossa nova e baliza da modernidade que eles então ambicionavam vivenciar artisticamente.

Essa ligação “joão-gilbertiana” se desdobrou em uma das parcerias mais singulares da música brasileira. Sobretudo até o início da década de 1970, a relação artística entre os dois se deu através de um curioso jogo de espelhos. Não apenas musical, mas inclusive visual, através de penteados, roupas e um mesmo batom vermelho.

Desde antes de Baby, antes mesmo de Domingo (1967), álbum bossanovista que marca a estreia dos dois, Gal já era um alter ego feminino do compositor. Talvez por isso mesmo, ela também era uma espécie de protótipo de modernidade para o qual ele projetava os experimentos estéticos que o inquietavam. O próprio “autoritarismo terno” do eu-lírico de Baby ao seu interlocutor, em relação ao que “você precisa” para obter um consumo cultural moderno, evoca o jogo de espelhos dos dois corações vagabundos.

Embora os gestos fundantes do Tropicalismo sejam as performances de Alegria, alegria, com Caetano Veloso ao lado dos Beat Boys, e Domingo no parque, com Gilberto Gil e os Mutantes, no Festival da Record de 1967, Baby marcou a popularização do movimento e facilitou sua adesão social. Afinal, com sua cínica ternura, absolveu o Tropicalismo de parte das controvérsias que o tinham como alvo.

Baby se despedia de 1968 como a terceira canção mais tocada do ano, atrás apenas de Hey Jude, dos Beatles, e Viola enluarada, de Marcos Valle e Milton Nascimento. A 29ª colocação nas paradas de sucesso também pertencia a Gal: Divino maravilhoso, de Caetano e Gil. A enfática chamada para estarmos atentos e fortes diante da ditadura militar havia sido apresentada pela primeira vez ao público no Festival da Record daquele ano. Com uma performance tropicalista até a medula, a cantora demarcava em público a persona política que assumiria na música popular brasileira até o início da década de 1970.

O sucesso de Baby havia garantido a Gal o privilégio de estrear em um álbum solo naquele mesmo 1968, mas, após o exílio de Caetano e Gil, a gravadora reagendou a estreia do disco já pronto para março do ano seguinte, temendo represálias.

Sem chão com a partida de seus principais alicerces afetivos e artísticos, Gal tomaria as rédeas da resistência estética à ditadura militar. O germe tropicalista permaneceria pulsante nos álbuns e espetáculos da cantora do período, mas sem ser um pastiche do movimento: estava mais próximo de uma decantação deste, um desdobramento, uma reelaboração estético-política que deu corpo ao desbunde.

O grande marco desse movimento foi justamente o espetáculo Gal a todo vapor, de 1971, que ganhou o acréscimo de Fa-tal em sua adaptação para disco. Urdida por momentos de melancolia, raiva e arroubos de alegria, a narrativa assinada pelo poeta Waly Salomão consistia em uma mensagem na garrafa para os exilados d’além-mar: meu amor, tudo em volta está deserto, tudo certo como dois e dois são cinco.

Eduardo Jardim sustenta que Gal a todo vapor demarcou o fim do Modernismo no Brasil, uma vez que as preocupações de raiz oswaldiana inexistiam na concepção do espetáculo. “Para seus criadores, o Tropicalismo – o movimento que os antecedeu – já tinha encerrado seu ciclo. Suas conquistas foram incorporadas e não era preciso voltar a elas”, escreveu o autor, no já citado livro de ensaios. Para ele, as canções de Waly e Jards Macalé presentes no espetáculo, em especial Vapor barato, são as realizações mais significativas dessa nova etapa – do fim de uma modernidade crítica para um abismo de definição imprecisa.

Sai de cena um terno e suave baby, I love you. O galante vocativo anglicano não morre, mas se transforma em uma honey baby. Um lamento gutural de um bicho triste, um grito agudo como a dor de quem o emite, projetado para ser ouvido a grandes distâncias. No espetáculo Recanto, de 2012, os dois vocativos coexistem na narrativa proposta para Gal por Caetano. No roteiro, as canções participam de um acirrado jogo semântico de luz e sombra em que não há vitoriosos nem perdedores definitivos. Há o Brasil, e nele urubus passeando entre girassóis, tigres e leões soltos nos quintais. Mas há também o importante lembrete de que precisa ter olhos firmes, pra este sol, para essa escuridão.