Quem ainda vê com ressalvas, ou mesmo desdém, a existência de uma crítica literária feminista, ou acredita que a importância dessa crítica resida apenas na recuperação e visibilização das produções de mulheres, será pego completamente de surpresa pelas transformações radicais que estão se operando na maneira como lemos e produzimos literatura. Embora a recuperação e visibilização sejam, sim, pontos cruciais dessa crítica, ela também avança, em paralelo, seus tentáculos sobre as demais obras do cânone — as masculinas, hegemônicas —, generificando a análise dessas produções e promovendo novas compreensões sobre o que elas dizem, o que são capazes de dizer.
O caso Dom Casmurro (1900), de Machado de Assis, sirva de exemplo do que se pode esperar dessa crítica. Mais de meio século foi preciso para vermos surgir, pela abordagem inesperada de uma mulher, Helen Caldwell, os primeiros questionamentos em relação à culpa atribuída a Capitu. Por mais de meio século, e para muita gente ainda hoje, a palavra do marido/narrador foi suficiente para decretarem Capitu culpada, culpa que nas mãos de homens, com ou sem qualquer comprovação, tem sido alegada para condenar mulheres à morte.
Acusações de infidelidade, quando têm mulheres por alvo, nunca deveriam ser debatidas sem levar em consideração esse recorrente desfecho e, por conta disso, preciso discordar da posição de Silviano Santiago, para quem a “condenação ou absolvição de Capitu trai, por parte do leitor, grande ingenuidade crítica” (Uma literatura nos trópicos, 1978). O crítico, em abono de sua posição, propõe que “o romance de Machado, se estudo for, é antes estudo do ciúme, e apenas deste”, explorando, então, de maneira magistral a forma enviesada com que o narrador constrói seu discurso/caso. Mas o que ele acaba, nisso, desconsiderando é que o ciúme (palavra que esconde inúmeras armadilhas) costuma ter consequências nefastas quando nutrido por homens e que, lido dessa maneira, esse e outros tantos livros tornam-se um alerta a esse respeito. A abertura do Menino de engenho (1932), de José Lins do Rego, que o diga: “E correndo para cima, vira o meu pai com o revólver na mão e minha mãe ensanguentada. ‘O doutor matou a D. Clarisse!’ Por quê? Ninguém sabia compreender.” Do mesmo modo, toda a perseguição a que Paulo Honório sujeita Madalena em S. Bernardo (1934), de Graciliano Ramos, culminando no suicídio da esposa; ou mesmo o sofrimento e morte de Capitu, cujo marido esteve a ponto, inclusive, de assassinar Ezequiel, filho do casal (detalhe que parece chamar menos atenção do que o suposto adultério, o que diz muito da nossa cultura e crítica).
O parti pris misógino do “culpada até que se prove o contrário” poderia, aliás, ser o justo motivo que leva o Dom Casmurro a figurar com destaque na lista de “narradores não confiáveis”: ou seja, não pelo fato de ser um marido/narrador que quer nos conduzir por uma leitura duvidosa, mas por ser essa uma narrativa contada por alguém que, imbuído dos preconceitos do seu tempo (e, em boa medida, os mesmos do nosso), não consegue sequer percebê-los construindo e adulterando sua perspectiva dos fatos. Tudo isso sabiamente orquestrado por Machado, ponto que estabelece um paralelo interessante entre esse livro e o Ulysses de James Joyce.
Há toda uma cultura misógina autorizando a suspeição de Bento Santiago e concedendo-lhe, de cara, ares de verdade (considere-se, a esse respeito, o primeiro meio século de análises do Dom Casmurro), mesma cultura que, ante a mera desconfiança dum marido, legitima violências físicas e psicológicas, cárcere privado e mesmo o assassinato. Ele é “não confiável” também ao narrar o quase infanticídio ou, aí, devemos levá-lo a sério? Será Capitu também culpada disso?
Se a execrável noção de “legítima defesa da honra” não tem mais livrado do cárcere assassinos de suas companheiras, ela ainda é bastante eficaz, na literatura como na vida, em assegurar a esses homens que suas respostas violentas à “convicção do adultério”, seja ela falaz ou verdadeira, são perfeitamente razoáveis. Em função disso, se não se pode condenar nem absolver Capitu, que a presunção de inocência, pilar do nosso Estado de Direito, entre em cena e ajude a lançar luzes sobre as inúmeras violências de que ela foi vítima na trama (e sobre as quais a crítica frequentemente lava as mãos).
Concebendo-se dessa maneira o caráter “não confiável” do narrador de Machado, uma lógica similar poderia ser aplicada a diversas outras obras da nossa literatura, inclusive as que não apresentam um narrador-protagonista. Eis, em parte, a que visa o presente artigo. Contudo, o foco da discussão, a partir daqui, serão não as narrativas de ciúme e feminicídio, ainda que tais elementos estejam sempre implicados, mas representações literárias do estupro. E, como se verá, trará tanto passagens que univocamente se entendem por tal palavra, quanto outras que só à luz duma abordagem feminista receberiam semelhante nome. Não são poucas as obras, e mesmo leituras, que incorreriam nesse segundo caso, aliás.
Em recente texto sobre A Ilha dos Amores (de Os Lusíadas, de Camões), discuti o quão entrelaçadas podem se mostrar representações do desejo erótico e da violência sexual, informando discursos jurídicos contemporâneos sobre limites entre sexo e estupro. A proposta agora é trazer à baila a maneira como alguns textos chave da literatura brasileira têm conduzido a questão. A investigação se restringirá a umas poucas obras, haja vista as limitações do espaço.
A primeira cena que nos interessa é o momento em que “o herói da nossa gente” (Macunaíma, de Mário de Andrade), avista Ci, Mãe do Mato, dormindo e se atira sobre ela “pra brincar”. “Ci não queria”, diz-nos a narrativa na sequência, e, mais forte do que Macunaíma, faz valer sua força, impedindo que o herói a estupre. A narrativa risonha tira todo o peso da situação, e isso mesmo quando, no próximo passo, os irmãos do herói imobilizam Ci e a deixam desacordada com “uma porrada no coco”: “Quando ficou bem imóvel, Macunaíma se aproximou e brincou com a Mãe do Mato” e a natureza, em festa, veio saudar “o novo Imperador do Mato-Virgem”. Nas entrelinhas, a mensagem: “o não querer de Ci (e, no limite, de qualquer mulher) só vale se, mesmo em desvantagem de forças, ela for capaz de sustentá-lo”.
A partir dali os dois se tornam um feliz casal e a libido da parceira se revela até mais imperiosa que a de Macunaíma, numa mensagem clara sobre o que de fato significam as resistências iniciais de uma mulher. Terem iniciado uma relação amorosa faz com que o feito deixe de se configurar estupro? Aliás, houve estupro? Estaremos prontos para pensar o “herói da nossa gente”, assim como a nossa própria gente, a partir dessa palavra? Um crítico do porte de Haroldo de Campos, em sua sofisticada análise da obra (Mário de Andrade: a imaginação estrutural), reduz a violação sexual ocorrida a uma infração do “’tabu’ do celibato das Amazonas” e diz, em seguida, que o herói “se socorre dos manos para vencer a luta amorosa”. Até muito recentemente, a reparação cabível face a semelhante violação era, sendo a vítima solteira, casá-la com o estuprador.
Daqui seguimos para Jorge Amado, autor que revela predileção especial por descrever em minúcias cenas do tipo. Lembro, inclusive, de uma amiga que abandonou a leitura de Capitães da areia (1937), por pressentir que o protagonista Pedro Bala estava a ponto de cometer um estupro, o que me faz pensar nas maneiras possíveis, mas também responsáveis, de se narrar semelhante acontecimento, e também no que buscaria um autor com essa minuciosidade. É nítido o desejo de Amado de apresentar uma narrativa empática para com a condição daqueles meninos em situação de rua, mas é igualmente nítido que essa empatia desaparece no que toca às personagens femininas.
As considerações a um só tempo racistas e misóginas sobre o corpo da adolescente negra (por exemplo, “os seios saltavam pontiagudos e as nádegas rolavam no vestido, porque os negros mesmo quando estão andando naturalmente é como se dançassem”) avistada por Pedro sozinha no areal põem-se, de pronto, a serviço de justificar e autorizar o desejo do rapaz, relativizando o terror que se prolongará por mais de quatro páginas. Tais considerações corroboram o que Sharon Marcus entende como o “script social” que “ajuda a criar o poder do estuprador”, uma vez que não é só de força física que ele precisará para atingir seu objetivo (Fighting Bodies, Fighting Words: A Theory and Politics of Rape Prevention). Como parte ainda desse script, podemos pensar a educação da mulher para paralisar em situações de perigo, além do fato de a vulnerabilidade e passividade femininas serem culturalmente erotizadas e entendidas como disponibilidade para o sexo.
A condescendência com que a narrativa trata Pedro é perceptível desde o começo da cena, como nesta passagem “pensando nas nádegas reboleantes da negrinha não pensava na morte de seu pai defendendo o direito dos grevistas”. E o tom condescendente segue, a narrativa agora abordando, junto, outro tópico de grande importância para o assunto em questão, a ignorância (e quem teria o direito de alegá-la):
“Não sabia (ela) que a areia das docas é a cama de amor de todos os malandros, de todos os ladrões, de todos os marítimos, de todos os Capitães da Areia, de todos os que não podem pagar mulher e têm sede de um corpo, na cidade santa da Bahia? Ela não sabia disto, mal fizera quinze anos, havia muito pouco tempo que era mulher.”
Eve Sedgwick, na introdução de seu monumental Epistemology of the closet, defende que “a assimetria epistemológica das leis que versam, por exemplo, sobre o estupro privilegiam ao mesmo tempo os homens e a ignorância, na medida em que pouco importa o que a mulher estuprada percebe ou deseja, desde que o homem que a estupra possa alegar não tê-lo notado (ignorância na qual a sexualidade masculina recebe uma cuidadosa educação). Ela conclui afirmando que “o maquinário do estupro (rape machinery) organizado por esse privilégio epistemológico da ignorância” tem como um de seus principais efeitos controlar “as ambições mais amplas de mulheres de se apossarem dos termos da sua própria circulação”.
A violência contra a mulher, portanto, se torna violência não apenas contra a vítima individual, mas contra toda a categoria. Torna-se um aviso sobre o que lhes pode ocorrer se não se comportarem de uma determinada maneira. E nisso a mesma alegação de ignorância que, feita pela menina, resulta infrutífera é a arma que permite a Pedro violá-la sem ele sequer se dar conta da violência que comete. O aspecto mais perverso, no entanto, fica por conta das frequentes intromissões do narrador no pensamento da moça, apresentando-a cada vez mais em dúvida quanto à situação que enfrenta: “no fundo de seu terror, começava a sentir um fio de desejo (...) Se ela não resistisse contra o desejo e deixasse que ele a possuísse, estaria perdida”. Diversas referências à prática dos Capitães da Areia de “derrubar negrinha no areal” e, na única vez em que a ação é descrita, a vítima mostra-se dividida entre o desejo e o pânico.
Como coloca Virginie Despentes, sobreviver a um estupro torna-se por si só, na lógica machista, uma prova contra a vítima: “uma mulher preocupada com sua dignidade preferiria ser morta” (em Teoria King Kong). O que, segundo a autora, se casa com três aspectos centrais da educação das mulheres: 1. não (saber) se defender, 2. acreditar que o estupro é a pior coisa que pode lhe acontecer e, além disso, 3. sentir-se culpada pela violação que sofreu.
Estamos obviamente frente a um estupro em Capitães da Areia, mas nas entrelinhas do texto, seja pelo tom condescendente com que trata Pedro Bala, forçando o leitor a identificar-se com ele e minimizar seus erros, seja pela própria dúvida em que nos apresenta a moça anônima (a quem sutilmente se culpa, pelo descuido), a sensação é de que, quando a vítima é mulher, mesmo a violação mais absurda pode acabar se revelando desejada ou, pelo menos, prazerosa. Algo similar ocorre no conto O cobrador, de Rubem Fonseca, onde vemos uma descrição brutal de estupro terminando justo com o gozo da vítima: “Como já não tinha medo de mim, ou porque tinha medo de mim, gozou primeiro do que eu”.
Aqui ainda podemos imaginar que se trata da imaginação delirante do violador, mas, na obra de Amado, como compreender um narrador que apresenta a personagem, ao mesmo tempo, “chorando de medo” e sentindo “a chegada impetuosa do desejo”? A partir de que perspectiva essa história é contada?