bolanojaneiro2018

 

Dois ancestrais argentinos são logo lembrados diante de A literatura nazista na América, de Roberto Bolaño (1953-2003): História universal da infâmia, de Jorge Luis Borges (1899-1986), e Sinagoga dos iconoclastas, de J. Rodolfo Wilcock (1919-1978). Textos que, ao perfilar homens infames, aderem à poética dos verbetes de enciclopédia. A ironia de entender o sinuoso pela objetividade. Mas nossa atenção será voltada a outro tópico. É curioso notar que, numa obra de armação tão cerrada, dirigida com rédeas curtas pelo escritor chileno, uma peça se destoe do restante e acabe se mostrando fundamental para entendermos não apenas o livro em questão, também o próprio legado de Bolaño. Trata-se do verbete sobre o poeta-aviador Carlos Ramírez Hoffman, duplo do poeta Emilio Stevens, ponto de partida para o desdobrar de um sem-fim de outros duplos.

Ao contrário das outras entradas do livro, a saga de Hoffman é narrada em primeira pessoa e justamente por um personagem Bolaño, que se ausentará nos livros seguintes do autor. O verbete irá se expandir naquele que foi o seu primeiro grande romance, Estrela distante, lançado originalmente no mesmo ano (1996) que o bestiário dos autores nazistas. Em Estrela, Bolaño marca a separação do seu “eu” dos diversos alter egos que já atravessavam sua obra. Do verbete para o romance, todos também mudam de nome. Emilio Stevens passa a se chamar Carlos Wieder (em alemão, o sobrenome significa justamente “outra vez”) e Ramírez Hoffman, Alberto Ruiz-Tagle. As irmãs Venegas, assassinadas por Stevens, passam a se chamar as irmãs Garmendia e, mais importante, Bolaño se transforma em Arturo Belano.

É como se a questão de Estrela distante não fosse apenas ampliar as possibilidades de contar uma história. Também abrange o latente desejo de ser outro, de ser outro para desaparecer – e desaparecer é o grande projeto de Emilio Stevens/Carlos Wieder e Ramírez Hoffman/Alberto Ruiz-Tagle. Além da troca de nomes, outra questão central na passagem entre o verbete e o romance: não há mais todas as certezas que o formato enciclopédico oferecia. Várias novas dúvidas são instauradas – por exemplo, talvez Emilio Stevens/Carlos Wieder e Ramírez Hoffman/Alberto Ruiz-Tagle não sejam mais a mesma pessoa. Somos levados para a incerteza do túmulo vazio, do túmulo inexistente, signo de um momento contemporâneo que, numa América Latina marcada pela raiz comum de regimes totalitários, também podemos chamar de Pós-ditadura.

As camadas de máscaras usadas por Bolaño em seus livros dão conta da indizibilidade de uma verdade típica de quem sofreu um trauma. É o sussurro do militante que não pode se expor em tempos repressivos; ainda que eles tenham passado – mas quando é que se pode dizer que um trauma prescreve? Em Estrela distante, o relato do alter ego Arturo Belano reivindica recuperar o que foi perdido com a violência do poder. Essa questão nos leva a Beatriz Sarlo e a um dos problemas que ela levanta em seu ensaio Tempo passado – Cultura da memória e guinada subjetiva: o que garante a memória e a primeira pessoa como captação de uma experiência? Talvez nada de forma concreta, apenas uma tentativa, talvez...

Mas por que o verbete de Hoffman se destaca da estrutura de A literatura nazista na América e por que ele se mostrou tão importante a ponto de ter se desdobrado num romance? As tramas de ambos retratam os momentos que antecederam o golpe de Pinochet, aqueles dias sem medo, as noites sem o som do toque de recolher e a irmandade fundada na poesia. E mais: retrabalham as lembranças que Bolaño e seus companheiros/seu alter ego e personagens precisaram “criar” para entender o 11 de setembro chileno. Nas palavras do escritor, Estrela distante foi “una aproximación, muy modesta al mal absoluto”.

Foi justamente ao fazer essa aproximação ao mal absoluto que Bolaño criou, em Estrela distante, sua “obra síntese”, a que contém todas as questões que se repetiriam no restante dos seus livros: a relação entre poesia e revolução, entre a literatura e o mal, a figura do poeta como herói (ou anti-herói), o cenário de violência da ditadura chilena, o exílio como cidadania, a busca por um escritor desaparecido, o processo de construção de alter egos e as referências literárias que misturam nomes reais e fictícios em um jogo um tanto quanto perverso.

Com a exceção da poesia (que está sendo traduzida por Josely Vianna Baptista), a Companhia das Letras encerra, com A literatura nazista na América, a publicação no Brasil das grandes obras de Bolaño. Para os iniciados, esse livro marca ainda o momento em que, pela primeira vez, nos deparamos com a ironia pestilenta em meio a arroubos de beleza que fez de Roberto Bolaño um nome de frente da literatura mundial.

E, para os leitores brasileiros, o livro tem dois feitos especiais. O primeiro é o verbete sobre um escritor que guarda uma relação de amor/ódio com Rubem Fonseca (que, para ele, é um “enorme filho da puta”, apesar de “escrever bem” – passagem que retomaria a filiação entre Fonseca e a ditadura, ou seja: colocaria Fonseca no bestiário dos autores nazistas). O segundo, ainda mais importante, é o timing de lançamento do livro, que chega em meio a uma crise de representação política e de tomada de poder pela extrema direita. É A literatura nazista na América em meio a um noturno do Brasil.