No início da década de 1870, qualquer pessoa que circulasse pelo arruamento irregular daquele subúrbio carioca dificilmente iria se deixar seduzir – a chácara não impressionava ninguém. Tinha, talvez, quintal de terra, um arremedo de pomar, canteiros de horta, alpendre ao lado com gradil de ferro. No casarão já velho, vários cômodos provavelmente permaneciam vazios e fechados. Mas, uma vez lá dentro, a chácara abria ao visitante seus segredos e bruxarias. O proprietário, um cônego ambicioso e pedante, num dia de sorte, se deparou com uma espécie rara de aranhas, capaz do uso da fala.
Aranhas, em geral, levam uma existência insípida e medíocre, porém virtuosa: fiam, tecem e morrem. Essa era uma espécie nova: grande dorso cor de sangue atravessado por listras azuis, movimentos rápidos, alegres, doidas por música. E ingênuas ao ponto de se deixarem impressionar pelas roupas, pela estatura e pela flauta de um cônego cuja aparição provocou impacto considerável na colônia: egresso, quem sabe, de algum Olimpo que se precipitara das estrelas para intervir nos seus assuntos e beneficiá-las de alguma forma. A intenção do cônego era outra: fazer uma revolução na ciência aliando-se à teologia e manipulando a fé das aranhas para alcançar a glória do conhecimento e do mando. O caminho mais fácil e curto que ele encontrou para imitar a potência de Deus e sobrepujar os rivais em prestígio e poder incluía impor à comunidade das aranhas uma forma de governo – decidiu-se pela República.
Machado de Assis publicou A sereníssima República (conferência do cônego Vargas) no finalzinho do ano de 1882; está incluída entre os contos de Papeis avulsos. Não sabemos se Machado conhecia um poema satírico publicado anonimamente, em 1705, sob o título A colmeia ruidosa; ou canalhas feitos honestos por Bernard de Mandeville (1670-1733), um médico holandês radicado na Inglaterra. Dez anos depois, o poema ganhou roupa nova, foi rebatizado de A fábula das abelhas; ou vícios privados, benefícios públicos e, quem sabe, essa versão chegou às suas mãos. Ou talvez não. Seja como for, uma coisa é certa: nos textos, seus autores fazem uso da ironia como estratégia da linguagem para refletir sobre a sociedade desenhada pelo horizonte de sua época. E ambos tratam de assuntos que continuam tendo algo a dizer a nós, hoje, como tinham a dizer, em outro tempo e em outra circunstância, aos seus contemporâneos.
Na origem grega da palavra, ironia é eironein, um tropo retórico e uma técnica de discurso. Permite ao autor interrogar um determinado tema dizendo sobre ele menos do que aquilo que realmente pensa ou fingindo ignorância sobre o assunto que foi apresentado. Sua força política reside exatamente nisso: a ironia remove a nossa certeza de que as palavras significam apenas aquilo que elas dizem. No poema de Mandeville, o excesso de moralidade cívica imposto a abelhas, na sua origem, autoindulgentes, viciosas e trapaceiras, levou a uma colmeia abúlica e estagnada. No conto de Machado, uma colônia de aranhas operosas, eficientes e pragmáticas – aranhas bem mais afeitas à rotina do que à aventura – forçada a adotar um governo prescrito de cima e de fora produziu uma república oligárquica, pouco democrática e corrupta.
A sereníssima República é uma sátira feroz da sociedade brasileira tal como Machado a percebia. Ao final do século XIX, o significado de “República” foi remodelado entre nós a partir de duas pontas. A primeira, por força do conteúdo produzido pelas novíssimas doutrinas em voga desde a década de 1860: positivismo, evolucionismo, biologismo. Um típico erudito da época, como o cônego Vargas, não cultuava a ciência à-toa em sua chácara suburbana, com fé quase sagrada. Ele simplesmente enxergava na ideia de “República” uma espécie de ferramenta política capaz de fornecer aos brasileiros a confiança no potencial da ciência para equacionar os problemas sociais e políticos do país.
É fácil identificar a segunda ponta desse processo de remodelagem no Brasil Oitocentista. O modelo de Veneza, escolhido por Machado, indicava a origem de determinadas estruturas de poder favoráveis a uma nova maneira de conceber a República entre as elites brasileiras ao final do século XIX. Veneza conseguiu a proeza de restringir a participação política e o provimento dos cargos públicos a um corpo numeroso, mas limitado, de antigas famílias. Como consequência, a possibilidade de inclusão de novos personagens aos direitos da cidadania permaneceu fechada entre os membros dessas famílias tornando-se, com o tempo, praticamente um atributo hereditário – e esse foi um dos principais critérios utilizados por Maquiavel para desconfiar de Veneza e definir seu modelo de República como governo stretto, vale dizer, de cidadania restrita. O resultado dessa engenharia constitucional conciliou um sistema eleitoral com uma forma de governo fortemente aristocrático – por obra dessa engenharia, Veneza forjou para si mesma o epíteto famoso de República Sereníssima.
No conto de Machado, a base do sistema republicano estava integralmente sustentada pelo ato eleitoral. Essa base tinha origem na antiga Veneza, servia como iniciação dos filhos da aristocracia no serviço do Estado e, entre as aranhas, era de execução simples: metiam-se bolas com os nomes dos candidatos que provaram certas qualidades para o exercício da cidadania num saco caprichosamente tecido com os melhores fios e extraia-se anualmente certo número de eleitos aptos desde então para as carreiras públicas. Machado podia até ter um olho posto em Veneza e o outro espiando a chácara do cônego Vargas, mas ele estava de fato investigando o contexto de passagem da Monarquia para a República e esse sistema eleitoral respondia a duas questões decisivas: quem pertence à comunidade política e onde se localiza a fonte de poder legítimo – respectivamente, o problema da extensão da cidadania e da origem da soberania.
Sem expansão significativa da cidadania, a República, no Brasil, seria apenas um mecanismo político de aplicação prática, Machado parece nos dizer. Se bem utilizado, iria desestabilizar de vez o Segundo Reinado e propiciar um novo rearranjo de poder capaz de substituir o pacto imperial. Um regime republicano serviria para acomodar novas elites a postos também novos, viabilizaria uma agenda de modernização e conseguiria regrar os conflitos intra-elites de modo a manter grau suficiente de estabilidade política. Acertou na mosca. A República que seria instalada em 15 de novembro trazia algo similar ao modelo adotado pelas aranhas. Não tinha nenhuma intenção de assegurar pela lei o compromisso com uma concepção de liberdade cuja realização requer, por um lado, a efetiva participação dos indivíduos no processo de autogoverno de sua comunidade política e, por outro, a garantia de que todos os membros dessa comunidade desfrutem direitos iguais. A Constituição de 1891, por sua vez, construiu o mecanismo que garantiu voto apenas a quem os vitoriosos de 15 de novembro julgavam poder confiar a preservação da sociedade e deixou boa parte da população brasileira do lado de fora da República: excluiu libertos e pobres – pela exigência de alfabetização, já que os analfabetos não poderiam votar –, além dos mendigos, mulheres, praças de pré [nota 1], membros de ordens religiosas, menores de 21 anos.
É certo dizer que o conto de Machado dispõe de enquadramento histórico – ou, como ele mesmo anotou ao final da primeira edição de Papeis avulsos, tem “sentido restrito” e trata “das nossas alternativas eleitorais”. Mas convenhamos: a implacável normalidade com que os brasileiros convivem hoje com a natureza redutora e deficitária de sua República tornaram o argumento do conto premonitório, sobretudo quando compartilhamos, no presente, o sentimento da crise e da incerteza política e o tempo cronológico parece estar se desconjuntando. Seu alvo mais visível orienta-se de fato pela futilidade das alternativas eleitorais em um sistema político de participação reduzida. Contudo, a narrativa segue em frente e traz novo argumento: onde os direitos políticos da cidadania estão restritos àqueles que as elites julgam poder confiar sua preservação, o voto pode ser torcido pelas chances de manipulação dos resultados – aliás, como acontecia com frequência no país ao final do século XIX.
Para Machado, portanto, o termo corrupção é motivo de preocupação diante da baixa qualidade da cidadania – e o combate à sua prática não se resolve numa perspectiva moralista. Na República instalada na chácara do cônego Vargas, havia quem se candidatasse pela necessidade de lucrar ou pela vontade de esticar as margens do poder em benefício próprio e a votação estava viciada, mas as aranhas se limitaram a reduzir o político ao que ele não é – a moral individual, a alternativa salvacionista. Denúncias foram feitas, a forma do saco eleitoral passou a ser modificada pacientemente a cada votação. Mas a coisa pública não se recuperou; ela continuou inexoravelmente concentrada no mesmo padrão anterior de corrupção.
Se prestarmos ouvidos à palavra corrupção ela mesma, desde sua origem, na Grécia antiga, fica mais fácil perceber a complexidade do fenômeno que o conto de Machado analisa. A palavra corrupção revela que ocorreram dois movimentos complementares no caminho de uma sociedade: algo se quebra em um vínculo; algo se degrada no momento dessa ruptura. As consequências daquilo que se partiu e se degradou são consideráveis para a República. Numa lasca, quebrou-se o princípio da confiança, o elo que permite ao cidadão associar-se para interferir na vida de seu país. Na outra lasca, degradou-se o sentido do público. Corrupção não é só um problema de ladroagem. Ele é algo mais grave porque desata o processo que instala os mecanismos de dissipação da vida pública de um povo, suas instituições, regras e princípios de convivência, agências de administração e de governo. Pelos efeitos que produz, a corrupção significa a morte para a República. E quando isso acontece, está aberto o caminho para a tirania de viés salvacionista.
Ao final, alguém sempre poderá argumentar – A sereníssima República é apenas uma história. E histórias não resolvem nenhum problema ou aliviam qualquer sofrimento; elas não podem dominar o passado de uma vez por todas ou desfazê-lo em nenhuma de suas partes. É verdade. Mas, elas podem manter vivo no tempo o sentido dos acontecimentos, relatando-os a nós mesmos e a outros, dizia Hannah Arendt. Histórias servem para isso: lembrar-nos do brasileiro que fomos e que deveríamos ou poderíamos ser. Refletir sobre tudo, questionar e recordar – para pensar sobre o que estamos fazendo hoje.
Referências bibliográficas
ARENDT, Hannah. Homens em tempos sombrios. São Paulo: Companhia das Letras, 1987
AVRITZER, Leonardo, BIGNOTTO, Newton, GUIMARÃES, Juarez, STARLING, Heloisa (org.). Corrupção; ensaios e criticas. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2012
FONSECA, Eduardo G. Vícios privados, benefícios públicos? A ética na riqueza das nações. São Paulo: Companhia das Letras, 1993
MACHADO DE ASSIS, J. M. A sereníssima República. In: ____. Papeis avulsos; obra completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1986. v. 2.
MANDEVILLE, B. de. The fable of the bees; or private vices, public benefits. Oxford: Oxford University Press, 1924.
MAQUIAVEL, Nicolau. Discursos sobre a primeira década de Tito Lívio. Brasília: Ed. UnB, 1982. (especialmente, livro primeiro).
HUTCHEON, Linda. Teoria e política da ironia. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2000.
STARLING, Heloisa M. Ser republicano no Brasil Colônia; a história de uma tradição esquecida. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.
NOTAS
[nota 1]. Praça de pré, cargo conhecido apenas como “praça”, é o militar em posição inferior na hierarquia militar. Abarca, em geral, cabos e soldados.