A coisa mais moderna que existe nessa vida é envelhecer.
Arnaldo Antunes
Aos 17 anos, Affonso Romano de Sant’Anna conseguiu um encontro com Manuel Bandeira — considerado, então, o maior poeta do Brasil. A intenção era lhe pedir opinião sobre seus versos de estreante. Segundo o jovem poeta, durante o breve encontro, Bandeira tossia, tossia já profissionalmente, como tuberculoso convicto. Algumas semanas à frente, Affonso recebeu por carta a resposta do grande poeta tecendo críticas sinceras aos seus poemas, bem como elogio a uns três considerados melhores. A resposta, seja pela crítica ou pelo agrado, tornou, portanto, a poesia possível.
Há alguns anos, para livro intitulado O que é poesia, Affonso a definiu como sendo o espanto transverberado. De um modo ou de outro, o adjetivo novamente o aproxima de seu maior poeta menor: Manuel Bandeira. Este confessa, ao primeiro contato com o vocábulo, ter se impressionado fundamente. Sentia a necessidade de utilizá-lo em um poema, passara o dia e a noite aguardando uma ideia que só viria na manhã seguinte, quando acorda com o soneto O lutador (e seu grande coração transverberado) já pronto na cabeça.
Se a poesia é uma forma de revelar, refletir ou transpassar o espanto, é da vida que colhemos a matéria do inesperado a fim de manifestá-lo em versos.
Aos 80 anos, Affonso Romano de Sant’Anna lançou recentemente pela editora Rocco seu A vida é um escândalo. Elaborado com a boa fluidez da oralidade e da autorreflexão, os poemas desse livro carregam o tempo como pano de fundo. Talvez esse assenhoreamento dos dias seja oriundo do olhar que produz recortes típicos da boa crônica cotidiana — trabalho que Affonso exerce há muitos anos. Esse viés temporal veiculado por aquelas páginas se sustenta pelos temas, principalmente, da velhice e da morte.
Na série Noturno em Ipanema (1, 2 e 3), temos um eu-lírico posto em seu terraço a observar o anoitecer enquanto se permite ser tomado por alguma nostalgia. Daqui vi/ o câmbio das estações./ Alegrei-me em algumas festas,/ perdi, ganhei, tornei a perder/ e a ganhar. O ponto fixo do alto de seu apartamento permite, exatamente pela imobilidade, a contemplação da imensidão cósmica (Este é o mesmo ritual/ há bilhões de anos./ Certamente o Sol se põe/ entre aquelas ilhas que o acolhem) e da vastidão mnemônica (Retomo as perplexidades/ que me acompanham/ — desde as montanhas de Minas). O poeta sabe que não é um herói de seu tempo, porém o contraste entre o mundo mundo vasto mundo exterior e o espanto — que a cada novo pasmo reedita sua individualidade — alarga a sensação da fragilidade humana (Já não dou conta de mim mesmo/ e da multidão em torno./ Minúsculo é esse planeta/ e eu cada vez me encolho mais.)
Em outro poema adiante, lemos a revelação Estranho ser um homem de minha idade/ e dizer: tenho 65 anos. A passagem dos anos costumeiramente gera esse confronto entre a idade real e a sentida pelo corpo em trânsito. O espelho se torna algoz que lembra uma idade cuja mente não ratifica. Lembro Ferreira Gullar, em entrevista ao programa Roda Viva, comentar: Dizem que tenho 80 anos, mas eu não acredito. É o que Affonso anota ao findar o poema, nos entregando a cena em que Espelho e mente/ se entreolham/ — divergentes. No poema seguinte, denuncia: Este espelho/ está tentando me envelhecer. As nuances do desgaste e suas marcas explicitadas pelo objeto — possivelmente preso acima da pia ou na porta do armário — expõem o hábito cotidiano de se reparar o suficiente ao ponto de que a estranha assimetria faça com que o eu de carne veja no eu emoldurado um dessemelhante. A solução encontrada por este que vê, agora resignado, é Deixar-se ir na corrente. O que pode ser um gesto/ digamos, de consentimento.// Ou quem sabe/ de sabedoria — tardia.
Gullar, na mesma entrevista citada, diz: o que me faz saber ter 80 anos são as perdas. Em Dia 31, Affonso Romano relembra — a partir dessa celebração obrigatória de final de ano — os que não conseguiram chegar aonde estamos, os mesmos que soltavam fogos, brindavam, puseram roupas novas/ fizeram planos e festas. Ao utilizar o verbo conseguiram, podemos entender a vida como corrida ou maratona cujo percorrer se torna um mérito, cada esquina uma conquista. Por outro lado, o ônus da continuidade é, apesar de se manter de pé, se sustentar sob o peso da absurda solidão.
Costuma ser normal essa perda de encantamento com os rituais sociais cotidianos durante o passar do tempo. É exatamente a condição insular do mais velho diante da multidão jovial que produz esse descompasso. Respondendo à jornalista da revista Cult, em 1998, sobre por que recusara convite para ir ao Salão do Livro de Paris, Hilda Hilst, aos 68, prontamente emenda: Ir lá para quê? Paris era bom quando eu fodia, com 20 anos.
FICAR NO CORPO FEITO TATUAGEM
A vida é um escândalo, a despeito de alguns poemas nesse tom fechado, privilegia um viés mais interessado na matéria pulsante da vida. A curiosidade do narrador de Tatuagens, ao observar os vários indivíduos carregando mensagens à flor da pele/ nas costas — para quem olhar, é exemplo desse espanto vital. O eu-lírico considera seu corpo e diz: Sob a pele escondo tatuagens/ rascunhos, subtextos./ Sou um palimpsesto/ que nem eu mesmo/ consigo decifrar.
O estranhamento diante da imagem ou da escrita impressas no corpo é natural pelo confronto geracional do que olha e do ser olhado. É natural à nossa época — de autoficções e bloggers (que narram suas vidas nas redes sociais) — a exposição intensa tanto do corpo quanto do texto — outrora preservados em vestes e pastas. Muitas vezes, como o poema de Affonso sugere, a tatuagem funciona para o indivíduo como cicatriz que passeia pela pele, feita como marca de alguma ferida interna que agora se faz exposta — no intuito exatamente de deixar respirar, de acelerar a cura do que nos consome por dentro, buscando, quem sabe, que algum outro ame a marca da morte em nosso corpo.
Por outro lado, menos feito de motivos e explicações, podemos pensar a tatuagem como a forma de arte possível para os não artistas de nosso tempo. Mais que adquirir uma pintura ou escultura, grava-se a pele como tela ou página em branco, trabalhando o significante que se possui. A linguagem dos corpos também sustenta a pulsão do pigmento.
MEU CORPO ME PENSA
O poeta e diplomata Chico Alvim em certo poema diz que Todo velho fica assim/ meio/ Ah nem sei como fica/ Ele não fica/ Um velho não fica. Este não lugar sugerido pelo Príncipe dos Marginais acaba sendo ratificado pela condição de rapidez (não característica do ser idoso) que a sociedade atual transformou em mérito profissional e individual. A terceira idade acaba, portanto, se vendo não pertencente à máquina do mundo; sendo a velhice um estado em que, na contramão da nossa época, as horas sobram em relação às poucas ocupações.
Lembro Marçal Aquino certa vez comentar que precisa da ilusão de ter umas cinco, seis horas para escrever, ao parar e sentar diante do computador — o que lhe daria um estado de tranquilidade necessário para seu processo criativo existir; mesmo que, ao final, ele só fizesse uso de duas ou três horas das tantas disponíveis. Essa elasticidade do tempo acaba sendo um estado necessário de velhice para a produção escrita. O vazio como uma pré-condição criativa.
Em Meu corpo me pensa, vemos Affonso Romano fazendo uso da despersonalização a fim de representar a condição da proximidade do fim, ao dizer Sei que vai me deixar/ e rogo: suporte-me/ um pouco mais. É comum esse duelo mente x corpo existir mediante as dobras da questão da idade avançada. Seja o físico estando mais deteriorado que a mente (como no caso do poema em questão, ficando-se à mercê do próprio invólucro), seja no caso inverso — retratado no poema A vizinha. Nele, fala-nos sobre senhoras de 92 e 89 anos dando voltas no playground — junto a seus acompanhantes como forma de exercício matinal. Senhoras que respondem frases protocolares mascarando uma ausente lucidez, típica da mente que já foi, mas presa num corpo que ainda está.
Estou pronto trata do inevitável tema morte sem a pesada carga de tristeza que o viés ocidental nos acostumou. O poema rejeita a palavra morte em prol de dissolução. Com esta palavra/ não sinto dor/ nem perda./ antes, integração — lemos. Esse viés cósmico de retorno ao grande todo (em detrimento de uma suposta individualidade que continua post mortem) se apresenta como possibilidade não só de fim da dor, mas de possibilidade de prazer.
Schopenhauer diz que o que torna a morte tão temível a nossos olhos não é tanto o fim da vida, pois a ninguém ela parece particularmente digna de ser lamentada, e ,sim, a destruição do organismo, uma vez que, na verdade, ele é a própria vontade que se apresenta como corpo. É natural que na velhice essa vontade cega pela vida a qualquer custo se esmoreça. Assistir ao falecimento de amigos e de entes próximos é algo que contribui para isso, não apenas por ratificar a proximidade do fim e a fragilidade da vida, como, em matéria prática, por alargar a nossa solidão. Alguns saem e Cheia de ausência a cidade (além de Dia 31 já citado) são poemas em que Affonso Romano exemplifica tal condição.
Em outra passagem, lemos Schopenhauer: O velho cambaleia ou repousa em um canto, apenas uma sombra, um fantasma daquilo que era. O que ainda resta nele para a morte destruir? O desejo. Se, em tempos mais antigos, aos estímulos afetivos era necessária maior capacidade de imaginação, na era das imagens e dos avanços medicinais, ainda é possível esticar a pulsão erótica em detrimento do pé em Thánatos. É o que vemos em Sou um homem de 75 anos, cujo eu-lírico diz: O desejo/ é quando o clarão da vida/ afasta a morte/ e busca no orgasmo ensandecido/ a própria superação.
A despeito de estar pronto e de, assim como muitos, utilizar conscientemente o prazer físico como alheamento de pesos mais graves (em poema mais à frente lemos: O orgasmo distrai./ Mas não resolve.), em A vida é um escândalo vemos Affonso Romano de Sant’Anna explorar a vulnerabilidade da condição do mais velho como procedimento de força e reafirmação, vemos ainda perdurar o espanto numa idade em que Pasárgada há muito já não traduz nosso possível desejo de evasão.