Pizarnik nov17

 

 

Não me ocorre lembrar com precisão através de quem tomei conhecimento da existência de Alejandra Pizarnik, mas creio que isso aconteceu no início dos anos 2000, enquanto ainda cursava a faculdade de Letras da UERJ. Havia no Rio de Janeiro naquele momento entre poetas e alguns jovens aspirantes a escritores, entre os quais eu me incluía, um animado intercâmbio de sugestões de leitura em que a literatura latino-americana contemporânea, e em particular a argentina chamava a atenção de maneira especial. Não posso deixar de mencionar a presença decisiva do poeta e hoje editor Aníbal Cristobo naquele momento, que, no final dos anos 1990, trazia “notícias fresquinhas” da poesia argentina e introduziu entre o grupo ligado e atento à Revista Inimigo Rumor autores como Liliana Ponce, Andy Nachon, a revista Tsé Tsé e um escritor até então para mim apenas misterioso chamado Cesar Aira.

Embora não fosse uma escritora contemporânea viva e sua poesia estivesse atravessada por uma tentação do absoluto e pela inflexão moderna de uma linguagem depurada e quase transparente de tão intensiva, acredito que Pizarnik tenha chegado até mim nesse contexto de “descobrimento” da poesia argentina contemporânea e que eu a tenha tomada como uma figura mais próxima e atual do que distante e anacrônica. Esse ambiente de recepção foi importante por permitir que a lesse como uma poeta em certo sentido “disponível” e não enredada nas tensões entre leitura canônicas e contracanônicas de sua obra, como talvez fosse o caso no contexto argentino. O que posso afirmar com toda certeza, hoje, numa visão retrospectiva é que sua adesão e ambição lírica, tanto quanto a tontura a que nos conduz com uma linguagem que gira em espiral, foram decisivas para minha compreensão das possibilidades do lirismo e da potência anacrônica do poema.

Embora seja muitas vezes lida na clave biografista, a poesia de Pizarnik se faz em intenso e vertiginoso diálogo com outras vozes poéticas que ela incorpora e fagocita, macerando e revolvendo certos versos ou topos até o seu esvaziamento ou contradição, como se a poesia fosse um ato de leitura ao mesmo tempo crítico e passional, que coloca o sujeito da leitura em risco. Há um modo de incorporação por eco em que ela vai esgarçando o texto alheio até o ponto de decepção. Esse diálogo privilegia bastante a literatura francesa com a qual ela mantinha uma intimidade crítica bastante particular, autores como Breton, Reverdy, Lautréamont e Rimbaud são cruciais nesse jogo de diálogo com os mortos. Do surrealismo francês ela é atraída pelos processos de dessubjetivação e pelo tom mórbido e noturno, em que o mito de Lautréamont tem um peso maior. Mas creio que é das leituras de Breton que sua escrita mais tira recursos. A ideia de um encontro falho, o “encontro que não houve” que atravessa todo o livro Nadja. Em sua leitura do livro, Pizarnik ressalta que no bosque onde um encontro deveria acontecer os personagens não entram, dão voltas ao redor, mas não entram, não conseguem entrar. O que a leva à conclusão: “É provável que a condição de poeta leve, entre outras coisas, a adotar a posição de fantasma. Um dos trabalhos forçados desse fantasma poderia consistir em girar incessantemente em torno de um bosque no qual não consegue adentrar, como se o bosque fosse um lugar vedado”.

Tomar o poeta por fantasma ou um sujeito não existente e assinalar-lhe uma tarefa impossível deixa de ser apenas uma tradução de tormentos íntimos para se tornar um projeto literário, uma aventura negativa na qual conta sobretudo levar a linguagem da poesia – com suas noites e luas e bosques – até o desgaste que revela o informe e um vácuo de sentido radical.

Depois dos poemas, o diário. Espécie de segundo convívio intensivo. Fascínio por sua atração baudelairiana pelo rés do chão, pelo obsoleto, também pelas pessoas obsoletas, pelos olhares fulminantes dos moradores de rua, pelas bonecas abandonadas, pelo modo como ela descreve seus trajetos de ônibus por Paris quando lá vivia. Fascínio, mas também aflição, diante do tom autoderrisório de certas passagens, a “sujeira” subjetiva dos diários ao mesmo tempo produz um alívio diante da limpidez dos poemas, mas reforça a imagem de uma escritora obcecada pela literatura e seus mitos modernos, de uma modernidade mais romântica que vanguardista.

O farto diário de Pizarnik interessa tanto pelo que expõe de sua consciência crítica, como testemunho de uma tensão lancinante entre uma subjetividade inspirada, entusiasmada, dotada por vezes de uma espécie de curiosidade cultural ora barroca ora renascentista, certamente moderna, e a perturbação melancólica, com todos os golpes abruptos de esvaziamento, de deserção do interesse pelo mundo – e pelo mundo literário – crise do sujeito do desejo que tem nela como consequência imediata a emergência de um tom terrivelmente sarcástico. Nesses momentos de verve implacável contra si mesma e suas fantasias literárias, Pizarnik joga o mito do poeta romântico contra a sujeira da vida cotidiana. Lembro um momento dos diários em que a poeta registra alguns pensamentos sobre suicídio – e esse pensamento não é apenas uma hipótese anódina da imaginação, mas uma espécie de preparo, de véspera, de ensaio; ocorre que na frase seguinte diz a si mesma que é impossível se suicidar com tantas calcinhas por lavar, assim imagina a cena do dia seguinte à sua morte e a devassa em seu quarto vergonhosamente desarrumado.

A mesma Pizarnik tão atraída pelo trabalho da negatividade também soube captar a dimensão do humor na linguagem de Cortázar e de Henri Michaux em artigos para jornais que valem a pena ser relidos. O humor e a música a atraíam como um antídoto, talvez porque em ambos a negatividade da linguagem se transforme em outro tipo de energia vital, imagino que numa vida longa talvez Pizarnik tivesse se dedicado a explorar a relação entre a escrita e o riso, por outro lado é evidente que sua escrita – inclusive a ensaística – depende também de uma escuta muito musical – mas não no sentido melódico – para os enlaces entre som e sentido. As palavras – que o Surrealismo já havia liberado das funções convencionais – perdem conexão segura com os referentes e liberam sua potência sonora, reverberam numa espécie de éter, são talismãs meio mágicos meio malignos. Ou, como refletiu em outra ocasião Maurice Blanchot, “a palavra é um objeto que nos leva e que pode nos perder; tem um valor além dos nossos valores. Podemos nos perder numa tempestade ou num pântano de palavras”.

A percepção da linguagem como um objeto enfeitiçado não torna Pizarnik uma poeta maquiavélica, que exploraria oportunisticamente o mito romântico e a própria depressão para produzir afinal uma poesia de efeitos, cerebral, feita de meros jogos virtuosos de linguagem. Que o lirismo seja algo distinto de uma poética da subjetividade inflada e autoflagelante e que possa, em certos casos, converter-se numa experiência que margeia a loucura e a perda de si, não faz dela uma experiência livre de efeitos sérios para quem escreve tanto quanto para quem lê. Pizarnik, sendo uma poeta mulher, diferente dos surrealistas franceses, mostra que a fragmentação do sujeito pode se traduzir em uma espécie de desmaio sucessivo, em que a linguagem é a espessura fina que recebe o eu incessantemente em queda da escritora. O que se toca ao tocar a morte com a linguagem? A essa pergunta que ronda diabolicamente seus poemas e seu diário, Pizarnik responde multiplicando os paradoxos que a questão envolve, dando-lhe uma formulação mais difícil: como matar aquilo que nunca teve uma vida plena, em suma, como matar um fantasma?

A poesia e a morte enlaçadas no ponto de um impossível-possível. Nos poemas, esse encaminhamento é repetitivo, insistente e um tanto quanto sádico; como leitora, experimentei-o como uma espécie de tontura, mas também como um tipo de tortura. Durante um ano inteiro li mais de trinta vezes o volume Poesía (1955-1972), publicado pela editora Lumen e organizado por Ana Becciú, a ponto de me sentir efetivamente aprisionada naquele livro. Tentava abandoná-lo, mas acabava abrindo-o novamente e a leitura recomeçava, em diferentes direções. O aprisionamento no circuito fechado dessa poesia me levou a colocar outras perguntas aos poemas de Pizarnik e ao modo como me atingiam como leitora. Acredito que a dimensão musical da sua linguagem seja crucial para entender esse tipo de envolvimento hipnótico, indo além das identificações que possam haver entre o leitor e os conteúdos reflexivos, estes também certamente musicais e igualmente hipnóticos. Não teria competência para fazer uma tal análise, mas se pudesse tentaria pensar em que medida Pizarnik joga com um princípio de reverberação, não no plano metafórico, mas com um sistema de ecos e de ativação do sentido pelo som e vice-versa que atravessa toda sua produção poética.

Mas ainda havia o problema de como parar de ler aquele livro. Já não era mais uma questão de reflexão crítica, mas uma espécie de mau humor, de irritação com um livro-arapuca ou livro-roda-gigante em um parque de diversões cujo responsável pela parada do brinquedo havia ido embora sem deixar vestígios. Decidi então jogar o livro contra suas próprias imagens de regresso e crueldade. Realizei em 2005 uma vídeo-instalação intitulada História Antiga, em que um peixe vermelho agonizava por alguns segundos sobre o livro em questão. Momentos depois, livro e peixe reapareciam submersos em água, as palavras moles e incertas como reflexos macios, os peixes nadando indiferentes ao poema. O trabalho era uma resposta ao círculo vicioso de leitura, mas era também um modo de tentar sair do sofrimento da abstração – Pizarnik chega a dizer que é possível morrer por abstração – e tocar as palavras com o corpo, tratá-las como substância. Felizmente, o vídeo teve também um efeito libertador e há muitos anos não o abro.

Hoje, neste exercício pouco ortodoxo de reflexão sobre Pizarnik, posso afirmar que continuo a me interessar pelo fato de que sua poesia possa ser lida como uma dimensão laboratorial em que a própria escrita se suicida dentro de um sistema de combinatórias que se esgotaria ou estava prestes a se esgotar. Há muito tempo li o livro de Cesar Aira sobre Pizarnik em que tecia uma série de considerações entre Pizarnik e a poesia de Antonio Porchia, o poeta declassée com quem ela estabelece um diálogo literário intenso e surpreendente. Se ambos utilizavam as “grandes palavras” da tradição poética, creio que a poesia de Pizarnik subverte o próprio sentido dessa ordem de grandeza na direção daquilo que ela mesma batizou de “pequenos fogos”, e é assim que prefiro ler hoje seu legado:

Cada día son más breves mis poemas: pequeños fuegos para quien anduvo perdida en lo extraño.