As dinâmicas da literatura em um contexto pós-moderno são o tema do novo livro de Leyla Perrone-Moisés, Mutações da literatura no século XXI (Companhia das Letras). O objetivo do livro é olhar para autores lidos hoje em dia – como Roberto Bolaño e Jonathan Franzen – para entender a potência da arte em questão, analisar os motivos de autores recentes impactarem os leitores. Abaixo reproduzimos um excerto do livro em que essas dinâmicas são discutidas de forma clara.
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Após a Segunda Guerra Mundial, o surgimento de uma cultura produzida de modo industrial e consumida indiscriminadamente assustou aqueles que tinham sido formados na alta cultura anterior. Pensadores marxistas, como Adorno e Horkheimer, atacaram a “indústria cultural” como “mistificação das massas”, culpando indiscriminadamente o cinema, o rádio, as revistas e a televisão de serem meros negócios, de oferecerem ao público uma diversão destinada a fazê-lo esquecer suas reais condições de trabalho no sistema capitalista, de uniformizar o gosto mantendo uma multidão de consumidores acríticos. No século XXI, vemos que essas críticas, apesar de bem fundadas, foram ultrapassadas pelas transformações da cultura como um todo. Adorno e Horkheimer, ao recusarem o cinema, a arquitetura moderna e a música popular norte-americana, parecem hoje tão apocalípticos quanto os críticos conservadores de direita.
Suas condenações eram exageradas e foram desmentidas pelo uso que a sociedade fez das novas tecnologias. Quando eles tachavam toda a produção cinematográfica de “lixo”, ignoravam a possibilidade, mais tarde reconhecida, de um filme ser uma legítima obra de arte. Quando diziam que o rádio criava consumidores passivos, pois “não se desenvolveu nenhum dispositivo de réplica”, eles não previam a web, a internet e a televisão interativa, que, embora ainda submetidas a uma padronização, abrem brechas para a expressão do individual e do divergente. Quando recusavam o jazz, sob a alegação de que nessa forma de música a síncope reproduzia “as pancadas desferidas pelo poder”[nota 1], mostravam-se surdos às novas formas musicais etc.
Dez anos mais tarde, as reflexões de Hannah Arendt sobre a crise da cultura são mais equilibradas e mais afinadas com a nova época que se inaugurava. A pensadora se preocupava com a situação da arte numa sociedade dominada pela cultura de massas. Arendt explica que, embora cultura e arte estejam inter-relacionadas, são coisas diversas. A palavra “cultura”, desde sua origem romana, implica criação e preservação da natureza e das obras humanas. As obras de arte são, para ela, a expressão mais alta da cultura, “aqueles objetos que toda a civilização deixa atrás de si como quintessência e o testemunho duradouro do espírito que a animou”. A cultura implica “uma atitude de carinhoso cuidado”, e
uma sociedade de consumo não pode absolutamente saber como cuidar de um mundo e das coisas que pertencem de modo exclusivo ao espaço das aparências mundanas, visto que sua atitude central ante todos os objetos, a atitude de consumo, condena à ruína tudo o que toca. [nota 2]
Arendt lembra que, no século XVIII, Clemens von Brentano criou a palavra “filisteísmo”, designando “uma mentalidade que julgava todas as coisas em termos de utilidade imediata e de valores materiais, e que, por conseguinte, não tinha consideração alguma por objetos e ocupações inúteis tais como os implícitos na cultura e na arte”. Mas pior do que isso, segundo ela, foi a apropriação progressiva da cultura pelos filisteus, nos séculos seguintes, como um meio de promoção social, de status.
Entretanto, esses “filisteus educados” ainda atribuíam um valor, embora deturpado, à arte, enquanto a sociedade de massas do século XX simplesmente a consome: “A sociedade de massas […] não precisa de cultura, mas de diversão, e os produtos oferecidos pela indústria de diversões são com efeito consumidos pela sociedade exatamente como quaisquer outros bens de consumo”. Os produtos dessa indústria de diversões são perecíveis, portanto precisam ser sempre renovados:
A indústria de entretenimentos se defronta com apetites pantagruélicos, e visto seus produtos desaparecerem com o consumo, ela precisa oferecer constantemente novas mercadorias. Nessa situação premente, os que produzem para os meios de comunicação de massa esgaravatam toda a gama da cultura passada e presente na ânsia de encontrar material aproveitável. Esse material, além do mais, não pode ser oferecido tal qual é; deve ser alterado para se tornar entretenimento, deve ser preparado para consumo fácil.
Essas considerações precursoras de Hannah Arendt têm-se mostrado absolutamente justas, com o passar das décadas e os avanços das tecnologias da comunicação. A arte, na televisão e na internet, tornou-se entretenimento ainda mais abundante, fácil e rápido do que em seu tempo. E a literatura, como forma de arte, tem sofrido os efeitos dessa situação. O sonho dos escritores modernistas era que a massa comesse o “biscoito fi no” por eles fabricado. Infelizmente, a massa tem preferido os cookies industrializados. E a produção tende a adaptar-se ao consumo.
Para que a literatura chegue ao grande público, promovem-se eventos literários (salões do livro, festas de premiação), nos quais autores e obras são apresentados como espetáculo. Os objetivos desses eventos são, sem dúvida, legítimos e justificados. Entretanto, o público numeroso que frequenta esses eventos parece incluir menos leitores de livros do que meros espectadores e caçadores de autógrafos.
Os escritores de hoje têm uma visibilidade pessoal maior do que em épocas anteriores porque são incluídos na categoria de “celebridades”, e os mais “midiáticos” têm mais chance de vender livros, independentemente do valor de suas obras. Ao mesmo tempo, nos debates teóricos, assistimos à defesa da “literatura de entretenimento” (nas palavras de Arendt, “preparada para consumo fácil”), contra as exigências daqueles que ainda têm uma concepção mais alta da literatura. Estes são chamados de conservadores e elitistas. Ora, a conservação é uma atitude inerente aos conceitos de cultura, de arte e de educação. Trata-se de conservação não como imobilismo e fechamento ao novo, mas como conhecimento da tradição sem a qual não se pode avançar. Em termos culturais, conservar não é regredir, mas é uma atitude política, porque concerne à sociedade como um todo. É o que pondera Hannah Arendt:
Cultura e política, nesse caso, pertencem à mesma categoria porque não são o conhecimento e a verdade que estão em jogo, mas sim o julgamento e a decisão, a judiciosa troca de opiniões sobre a esfera da vida pública e do mundo comum e a decisão quanto ao modo de ação a adotar nele, além do modo como deverá parecer doravante e que espécie de coisas nele hão de surgir. [nota 3]
Quanto ao chamado “elitismo”, trata-se, sim, de uma seleção visando a preservar o melhor do que já foi feito até hoje, e de uma resistência ao tsunami da indústria cultural. Pensadores mais recentes do que Arendt têm respondido a essas acusações. Umberto Eco, por exemplo. O ensaísta italiano assinala a existência de vários níveis de recepção da obra literária, reconhece que o leitor culto constitui uma elite, mas observa que a particularidade dessa elite é seu caráter inclusivo, e não exclusivo. Segundo ele, é o próprio texto, e não o autor, que privilegia o leitor culto, permitindo-lhe uma “ironia intertextual” à qual o leitor ingênuo não tem acesso. A ironia intertextual, segundo Eco, é um seletor classista que “reúne os happy few — salvo que quanto maior for o número desses poucos, mais felizes hão de sentir-se”. [nota 4]
Susan Sontag também defende a literatura de padrão mais exigente e responde às denúncias de “elitismo”:
Na América do Norte e na Europa vivemos hoje, creio que é justo dizê-lo, um período de reação. Nas artes ele assume a forma de uma ação intimidadora contra as grandes obras modernas, tidas como difíceis demais, exigentes demais com o público, inacessíveis (ou “não amigáveis”). E na política, ela assume a forma de uma rejeição de qualquer tentativa de avaliar a vida pública pelo que é desdenhado como meros ideais [...].
Hoje, a maior ofensa de todas, tanto na arte como na cultura em geral, para não falar da vida política, é dar a impressão de defender algo melhor, um padrão mais exigente, que é atacado, tanto pela esquerda como pela direita, como ingênuo ou como “elitista” (uma nova bandeira dos filisteus). [nota 5]
Jonathan Franzen, conterrâneo mais novo de Sontag, também recusa a pecha de elitista: “A palavra ‘elitista’ é um bastão com que golpeiam aqueles para quem adquirir tecnologia não constitui um modo de vida”. [nota 6]
Os pensadores acima citados acham que algo deve ser preservado da rica tradição literária ocidental, como resistência à indústria cultural e a uma concepção da literatura como mero bem de consumo, produzida em função de um público pouco exigente. A indústria cultural domina, atualmente, meios de difusão muito mais numerosos e poderosos do que no século passado, e é transnacional, tendendo à homogeneização dos produtos e do público.
Num de seus últimos textos, Susan Sontag dizia:
A lição da hegemonia dos meios de comunicação de massa — televisão, MTV, internet — é que só existe uma cultura, aquela que se encontra para além das fronteiras, em toda parte, que é — ou será um dia — apenas mais do mesmo, com todos no planeta se nutrindo da mesma forma com os padronizados entretenimentos e fantasias de Eros e violência manufaturados nos Estados Unidos, no Japão, onde for; com todos sendo instruídos pelo mesmo fluxo, de final aberto, de bits de opinião e informação sem filtros. [...] A cultura transnacional para a qual todos que pertencem à sociedade consumista capitalista — também conhecida como economia global — estão sendo recrutados é uma cultura que, a rigor, torna a literatura irrelevante — um mero serviço público que nos oferece aquilo que já sabemos — e pode encaixar-se nas estruturas de final aberto para a aquisição de informação e para a observação voyeurística à distância. [nota 7]
Esses pensadores do século XXI, que são também escritores de ficção, acreditam numa prática que tem mantido algumas de suas qualidades tradicionais e que é comumente chamada de “alta literatura”, mas que eu chamaria simplesmente de literatura. Essa prática, que felizmente ainda é a de vários escritores contemporâneos, se caracteriza por alguns valores básicos: o exercício da linguagem de modo livre e consciente; a criação de um mundo paralelo como desvendamento e crítica da realidade; a expressão de pensamentos e sentimentos que não são apenas individuais, mas reconhecíveis por outros homens como correspondentes mais exatos aos seus; a capacidade de formular perguntas relevantes, sem a pretensão de possuir respostas definitivas.
A importância da literatura na cultura contemporânea não pode ser defendida fora de uma prática. São os escritores e não os teóricos que definem, em suas obras, as mutações da literatura. Os valores acima sintetizados foram definidos pela modernidade, mas alguns dos valores modernos são atualmente menosprezados pelos escritores. A busca do “novo”, por exemplo. O “make it new” das vanguardas não é mais um mandamento. A originalidade ainda é um valor, porque o gosto pela informação nova é atemporal. Mas a maioria dos romancistas atuais não busca mais, como Joyce ou Guimarães Rosa, uma transformação inovadora da língua ou da técnica narrativa. De modo geral, o romancista contemporâneo continua usando técnicas narrativas tradicionais, apenas sutilmente renovadas com respeito aos diálogos e às descrições. A “beleza” também é um valor estético há muito desvalorizado. As belas fórmulas verbais são mesmo evitadas como kitsch, e isso ocorre até mesmo na poesia contemporânea. Os valores buscados numa narrativa ou num poema, atualmente, são a veracidade, a força expressiva e comunicativa.
Notas:
[nota 1] - Theodor Adorno e Max Horkheimer, Dialética do esclarecimento. Trad. de Guido Antonio de Almeida. Rio de Janeiro: Zahar, 1985, pp. 113-56, 114, 144.
[nota 2] - Nota do Suplemento Pernambuco: a citação está no livro "Entre o passado e o futuro". As páginas das citações de Arendt estão listadas na nota 3.
[nota 3] - Hannah Arendt, Entre o passado e o futuro. 7. ed. Trad. de Mauro W. Barbosa. São Paulo: Perspectiva, 2013, pp. 264, 252, 264-5, 253, 257, 259, 277.
[nota 4] - Umberto Eco, Sobre a literatura. Trad. de Eliana Aguiar. Rio de Janeiro: Record, 2003, p. 213.
[nota 5] - Susan Sontag, Ao mesmo tempo. Trad. de Rubens Figueiredo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008, pp. 228-9.
[nota 6] - Jonathan Franzen, Como fi car sozinho. Trad. de Oscar Pilagallo. São Paulo: Companhia das Letras, 2012, p. 224.
[nota 7] - Susan Sontag, op. cit., pp. 239-40.